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São Paulo, quarta-feira, 21 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Caiu a máscara

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

A Folha de 14 de abril revelou relatório do Banco Mundial ("Development World Indicators"), com comentários de Clóvis Rossi, sobre a questão social brasileira, comprovando condições precárias, que qualquer um de nós vem constatando no seu dia-a-dia, mas que foram habilmente encobertas ao longo da última década.
Nossa expectativa de vida ao nascer e a renda per capita são inferiores às médias da América Latina e do Caribe. A concentração de renda, inalterada, coloca-nos na incômoda quinta posição mundial, junto com Serra Leoa. Apenas 71% das crianças completam o ensino básico, o que nos iguala a Bangladesh. A desnutrição infantil é igual à da Argélia e a mortalidade infantil é maior do que a do Líbano, em guerra há mais de uma década. Pesquisas nacionais demonstram o mesmo quadro, com nuances até piores, como a mortalidade materna aumentando durante toda a década passada na cidade de São Paulo e a avaliação de alunos, pelo Ministério da Educação, ao final da 3ª série do curso médio, indicando só 5% deles com nível adequado em português e 6% em matemática; situação classificada como trágica pelo ministro Cristovam Buarque.
Essas constatações, apesar de tristes, aproximam-nos mais da realidade e nos afastam do discurso ufanista e falacioso dos avanços sociais. Se nos impedirem o diagnóstico, falseando a propedêutica, não haverá cura. No fundo era isso o desejado, pois a prioridade era a disciplina fiscal, o mercado e o lucro do capital; o social era contornado com campanhas arcaicas, projetos-pilotos focalizados, delegação para o terceiro setor, todos com grande ênfase na imprensa, que romanceava os métodos sem aferir resultados.
Essa estratégia, entretanto, não conseguiu impedir que o eleitor -incapaz de continuar suportando essa derrocada social, acompanhada pela violência e pelo desemprego- votasse pela mudança, colocando na Presidência da República um operário de esquerda, com a certeza de que ele a faria.
Na "Carta Capital" dessa mesma semana, Luiz Gonzaga Belluzzo analisou o desempenho econômico brasileiro nos últimos 50 anos e mostrou que o pior deles foi o dos últimos dez anos. Em geral, a questão social, na mediocridade administrativa dominante, acompanha a questão econômica -e aqui não se fez exceção.


Toda vez que houver diminuição do risco Brasil, aumentará para todos o risco de viver no Brasil


Desculpem-me as viúvas do neoliberalismo, mas esse é o resumo da situação herdada pelo atual governo e, seguramente, não será com a adoção do mesmo modelo econômico entrópico e social enganador que vamos resolvê-la. O continuísmo poderá, até estratégica e temporariamente, diminuir o risco Brasil, através do aumento de juros e superávit primário, que favorecem o capital; porém podem ter certeza: toda vez que houver diminuição do risco Brasil, aumentará para todos o risco de viver no Brasil.
Está certo nosso presidente quando se dispõe a fazer uma inserção "ativa e criativa" na globalização, em substituição à "passiva e subalterna" anterior. Somos um país continental, com quase 200 milhões de habitantes e uma invejável infra-estrutura, e podemos praticar uma negociação dura, informada e inteligente, sem chegar à ruptura, "Não podemos tudo, mas podemos muito mais", são palavras do presidente Lula que rompem educadamente com a tola "transição civilizada".
Se continuar nessa linha de ousadia sem perder a prudência, aproximando-se da socrática e difícil temperança, mais cedo do que se pensa negociaremos melhor a dívida, desenvolveremos uma tendência de diminuição dos juros e do superávit primário, que gerará desenvolvimento, empregos e mais recursos para as políticas públicas essenciais.
Mas isso não basta. Será preciso muita criatividade e competência para mudar radicalmente a sua estratégia e gerenciamento a fim de, com poucos recursos em acréscimo, dar a eles um direcionamento de igualdade e continuidade -que só se consegue com abordagem holística e modificações estruturais-, oferecendo cidadania a todos e fugindo dessa discussão diversionista que contrapõe focalização e universalização, pois o que interessa é equanimidade e, para obtê-la, deve-se integrar de forma inteligente ambos os enfoques, tratando desiguais de formas distintas para diminuir as desigualdades.
Não devemos esquecer que políticas públicas eficientes geram empregos, constituem um forte vetor de redistribuição de renda e alavancam crescimento econômico "igualizador" e includente.
Esse foi o compromisso do novo governo, recentemente reforçado em discurso do presidente, quando, respirando o ar dos inconfidentes, disse: "O direito à vida e tudo o que ela implica não podem ser objeto de compra e venda".
Estou certo de que a promessa será cumprida no devido tempo. É esperar, confiar, ajudar e continuar pressionando.

José Aristodemo Pinotti, 68, deputado federal pelo PMDB-SP, é professor titular de ginecologia da Faculdade de Medicina da USP. Foi secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da Saúde do município de São Paulo (2000) e reitor da Unicamp (1982-1986).


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