São Paulo, sábado, 21 de junho de 2008

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O programa brasileiro de combate à Aids dá a devida atenção aos homossexuais?

NÃO

Omissão e preconceito

MÁRIO SCHEFFER

A PARADA que reuniu mais de 3 milhões de pessoas na capital paulista e a conferência convocada pelo presidente da República deram visibilidade à promoção da cidadania e dos direitos humanos dos homossexuais.
Já na próxima semana, tem início o Congresso Brasileiro de Prevenção das DSTs e da Aids, momento oportuno para exigir reparações e para voltar a tocar em um tabu supostamente perpetuado como medida protetora.
É preciso afirmar que ainda hoje a epidemia da Aids atinge os homossexuais no Brasil.
Soma-se a isso a polêmica em torno da recente notícia de que arrefeceu em muitos países a ameaça da Aids entre os heterossexuais. Não é o caso do Brasil, mas, por aqui, é preciso tirar do armário a realidade enrustida.
Na história recente da Aids no país, as políticas governamentais e as parcerias entre os programas de combate à doença, ONGs e movimento homossexual têm ocupado um espaço ambíguo: contribuíram para avanços significativos contra a discriminação e a homofobia, mas não conseguiram impor como terreno permanente de intervenção de saúde pública a vulnerabilidade acrescida dos homossexuais à epidemia.
Diretamente afetados, já no final dos anos 1980 os homossexuais protagonizaram boas respostas.
Um primeiro movimento conjugou a mobilização comunitária e a adoção de práticas de sexo seguro, uma adaptação exemplar. Mas não são poucas as evidências internacionais de um reengajamento dos gays na sexualidade mais próxima aos períodos pré-epidemia. Verifica-se um crescente relaxamento dos comportamentos protegidos, ainda que agora seja amplo o conhecimento dessa população sobre o HIV e a Aids.
Os critérios de vigilância da Aids no Brasil a partir de pacientes notificados dão um retrato do passado e não medem a disseminação atual da epidemia entre os gays. O diagnóstico também é tardio -43% das pessoas com HIV chegam ao SUS já doentes ou imunologicamente debilitadas. E há, ainda, importante subnotificação dos casos de exposição homossexual.
Mesmo assim, sabe-se que, de 1996 em diante, só faz crescer a Aids entre jovens homossexuais brasileiros. A taxa de incidência da Aids entre os gays é 11 vezes maior do que a da população heterossexual.
Foram corretas as respostas à "heterossexualização" da Aids no Brasil, sobretudo as estratégias para tentar conter seu grande avanço na população feminina. Mas, ao agirem sobre dados epidemiológicos absolutos, técnicos da saúde perderam o foco em grupos mais vulneráveis.
É hora de sair do papel o tardio plano do Ministério da Saúde de enfrentamento da Aids entre os homossexuais. Atrasada, a prevenção para esse público está ainda agarrada ao binômio folheto e camisinha, de 20 anos atrás. As poucas ações que sobreviveram pecam pela homogeneização, não levam em conta que as relações sexuais entre homens acontecem com grande variação de circunstâncias, experiências pessoais e suscetibilidades à infecção pelo HIV. Os homossexuais estão na maioria das comunidades, são de todas as idades, raças, estratos sociais e regiões do país.
Existem novas formas de afirmação de identidades, novos comportamentos e estilos de vida gay que influenciam a gestão coletiva do risco. E há que rever a terceirização da prevenção, delegada anos a fio às ONGs. Prefeituras e Estados têm que assumir sua obrigação legal, até porque os grupos de luta contra a Aids, desmobilizados e em crise, cada vez menos podem assumir essa tarefa.
Além disso, o SUS não deve, em detrimento de programas de saúde, se ocupar tanto de projetos institucionais e de visibilidade homossexual, que, embora imprescindíveis, podem ser assumidos por outras pastas, como Justiça, Direitos Humanos, Cultura.
Num país onde os homossexuais são proibidos de doar sangue e o fundamentalismo religioso de parlamentares impede a união civil e a criminalização da homofobia, ainda persiste a identificação dos gays como vilões.
O desafio maior é assumir um problema de saúde pública sem permitir o retorno do estigma da associação entre Aids e homossexualidade, sem vitimar e sem impingir ao homossexual o patrulhamento. Os gays já pagam um preço alto demais pela autonomia negada, pela omissão e pelo preconceito.


MÁRIO SCHEFFER, 41, comunicador social e sanitarista, doutor pela Faculdade de Medicina da USP, é membro do Grupo Pela Vidda-SP (Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids) e diretor do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos da Saúde).

mscheffer@uol.com.br


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