São Paulo, quarta-feira, 21 de agosto de 2002

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POLÍTICA NA MARRA

A cada dois anos, o brasileiro vai às urnas para escolher seus governantes e legisladores. É a normalidade democrática pela qual o país tanto lutou. A repetição do ritual do voto, contudo, encerra dialeticamente o perigo de a democracia tornar-se apática, de o eleitor desinteressar-se do processo.
Para evitar esse risco, criaram-se mecanismos como o voto obrigatório e o horário eleitoral gratuito, que buscam reforçar a participação popular. Os resultados não são exatamente brilhantes: pesquisa Datafolha mostra que 38% não têm nenhum interesse no horário gratuito dos candidatos à Presidência.
Esforços para incentivar o interesse do cidadão pelas eleições são bem-vindos. O problema do voto compulsório e da propaganda gratuita em rede nacional (que retira das pessoas a possibilidade de escolher assistir a um outro programa) é conceitual. São iniciativas que procuram afirmar direitos -o direito de voto, o direito à informação-, mas transformam prerrogativas em obrigações.
Há aí uma inconsistência. A ambiguidade de direitos que são também deveres encontra seu limite na noção de liberdade. É o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) quem estabelece a distinção fundamental. Há dois modos de cumprir um "dever". Quando o motorista respeita o limite de velocidade por medo de receber uma multa, ele age "de acordo com o dever". Mas o condutor pode também acatar a norma por acreditar que ela está de acordo com a racionalidade humana, que proporciona segurança, por exemplo. Nesse caso, ele age "pelo sentido do dever".
Esse motorista consciencioso é, para Kant, mais livre do que aquele que só teme a multa. A obrigatoriedade do voto ou de assistir à propaganda de algum modo retira liberdade do eleitor. Paradoxalmente, essas medidas, que visam a reforçar a democracia, a tornam, pelo menos no plano conceitual, menos livre e, portanto, menos democrática.
Restaurar a liberdade passa pela adoção do voto facultativo e pela dispersão do horário eleitoral na grade das emissoras, de modo que o telespectador possa escolher o que deseja assistir. Não há nada mais antipolítico do que a política na marra.



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