São Paulo, quinta-feira, 22 de janeiro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Vermute e amendoim

RIO DE JANEIRO - Para o bem ou para o mal, os dias da chamada folia estão se aproximando. Carnaval aparece todos os anos e pode ser previsto, como os cometas e os eclipses. Jornais, revistas e TVs se esbofam anualmente para contar a história da festa que teve o seu caráter religioso, mas logo retornou às suas origens pagãs.
Em sua melhor fase, ele associou as saturnais greco-romanas aos personagens da commedia dell'arte, os sátiros e bacantes da antiguidade aos personagens românticos de Veneza: pierrô, arlequim e colombina.
Nada como um carioca para avacalhar com as coisas sérias, para zombar do pulsar das multidões. Dois cariocas, então, é para sair de baixo. Noel Rosa e Heitor dos Prazeres, no início dos anos 30, enterraram definitivamente a santíssima trindade dos carnavais venezianos.
Heitor foi também pintor primitivo. Tenho na sala um de seus quadros deliciosos. Noel Rosa, depois de Camões, foi o sujeito que encontrou as melhores rimas que conheço na poética universal. Na marchinha "Pierrô Apaixonado", cuja letra é inteiramente de Noel, há uma quadrinha genial: "Um grande amor tem sempre um triste fim/ com o pierrô aconteceu assim/ levando esse grande chute/ foi tomar vermute/ com amendoim".
Hoje não se toma vermute com amendoim, toma-se uísque com pipoca. E tremo ao pensar no que Noel faria com a rima de pipoca.
Se o vermute com amendoim saiu de moda, pierrô, arlequim e colombina também deram adeus e foram-se embora. Sobrou o mulherio saudável e despido que hoje alegra nossa vista, nosso coração e nosso gesto.
Mudamos para melhor? Não sei. De uns tempos para cá, comecei a ver as coisas embaciadas e, obedecendo ao oculista, vou me retirar ao estaleiro para reparos. Ficarei fora uns dias, mas, desde já, saúdo o Carnaval que vai chegar. Com melhor visão do mundo, procurarei enxergar o rosto do pierrô, solitário, pálido de luar, tomando seu vermute com amendoim.


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