São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 2008

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CLÓVIS ROSSI

Um certo gosto de sangue

SÃO PAULO - Duas ou três cartas sobre o caso Isabella me horrorizaram. Leitores aparentemente alfabetizados decretavam a culpa do pai e da madrasta da menina só com base nas informações que a polícia libera para o jornalismo. Jogam no lixo o devido processo legal, um dos principiais pilares da civilização.
Pensei que fosse reação restrita a exóticos de diferentes origens, atraídos pelos holofotes da TV, mas verifico, horrorizado, que há muito talibã solto por aí.
Na maioria das cartas, chovem críticas à mídia, apontada como única responsável pelo circo armado em torno do caso. Responsável, sim; única, não.
Sem que as autoridades -as ÚNICAS que detêm informações sobre o caso- alimentem o circo, não há circo, ou o circo é menos nefasto.
O pecado original é, portanto, do delegado, que, em vez de apenas investigar, atua simultânea e indevidamente como promotor, juiz e alto-falante, condenando o casal desde o início, antes mesmo das primeiras investigações. Se se pretende civilizar um país talibanizado, é preciso primeiro que a polícia se comporte com a discrição indispensável.
A polícia portuguesa, por exemplo, não acusou os pais no caso da menina inglesa Madeleine, muito parecido com o de Isabella. Quando o fez, a mídia foi atrás e teve que pedir desculpas publicamente, na primeira página, e ainda doar uma baita grana para um fundo criado pelos pais para procurar a filha. E o fizeram sem saber se os pais são de fato inocentes.
Quanto à mídia, não vejo nenhum capanga armado obrigando o telespectador (ou leitor) a ficar sintonizado nos programas policialescos ou, agora, no noticiário sobre a menina morta.
Há público -e grande- para isso. Alguns são apenas portadores da normal curiosidade humana. Outros têm gosto de sangue na alma, não nos iludamos.


crossi@uol.com.br

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