|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CLÓVIS ROSSI
Um certo gosto de sangue
SÃO PAULO - Duas ou três cartas
sobre o caso Isabella me horrorizaram. Leitores aparentemente alfabetizados decretavam a culpa do
pai e da madrasta da menina só com
base nas informações que a polícia
libera para o jornalismo. Jogam no
lixo o devido processo legal, um dos
principiais pilares da civilização.
Pensei que fosse reação restrita a
exóticos de diferentes origens,
atraídos pelos holofotes da TV, mas
verifico, horrorizado, que há muito
talibã solto por aí.
Na maioria das cartas, chovem
críticas à mídia, apontada como
única responsável pelo circo armado em torno do caso. Responsável,
sim; única, não.
Sem que as autoridades -as
ÚNICAS que detêm informações
sobre o caso- alimentem o circo,
não há circo, ou o circo é menos
nefasto.
O pecado original é, portanto, do
delegado, que, em vez de apenas investigar, atua simultânea e indevidamente como promotor, juiz e alto-falante, condenando o casal desde o início, antes mesmo das primeiras investigações.
Se se pretende civilizar um país
talibanizado, é preciso primeiro
que a polícia se comporte com a discrição indispensável.
A polícia portuguesa, por exemplo, não acusou os pais no caso da
menina inglesa Madeleine, muito
parecido com o de Isabella. Quando
o fez, a mídia foi atrás e teve que pedir desculpas publicamente, na primeira página, e ainda doar uma baita grana para um fundo criado pelos
pais para procurar a filha. E o fizeram sem saber se os pais são de fato
inocentes.
Quanto à mídia, não vejo nenhum capanga armado obrigando o
telespectador (ou leitor) a ficar sintonizado nos programas policialescos ou, agora, no noticiário sobre a
menina morta.
Há público -e grande- para isso.
Alguns são apenas portadores da
normal curiosidade humana. Outros têm gosto de sangue na alma,
não nos iludamos.
crossi@uol.com.br
Texto Anterior: Editoriais: A vitória de Lugo
Próximo Texto: Brasília - Eliane Cantanhêde: Mais um Índice
|