São Paulo, domingo, 22 de maio de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil e a América do Sul

MONIZ BANDEIRA


O Brasil demonstrou que visa tornar a Comunidade Sul-Americana de Nações uma potência mundial, econômica e política
George Hegel , ao dizer que a América era a terra do futuro (1830), previu uma "contenda entre a América do Norte e a do Sul, em que a importância da história universal deveria se manifestar". Não explicitou que tipo de contenda. Mas, na sua exposição, o México figurou como um país à parte da América do Sul.
Também o escritor francês Michel Chevalier fez observação semelhante em 1837. O político chileno Francisco Bilbao Barquín foi provavelmente o primeiro que integrou o México e a América Central no conceito de América Latina, em conferência em Paris (1856). No mesmo ano, o escritor colombiano José Maria Torres Caicedo (1830-1889), no poema "Las dos Américas", referiu-se à "raça da América Latina, frente à raça saxônica, inimiga mortal que já ameaça destruir sua liberdade", e acrescentou que "a América do Sul está chamada a defender a liberdade genuína (...)", pois "o mundo jaz entre trevas profundas: na Europa domina o despotismo, na América no Norte, o egoísmo, sede de ouro e hipócrita piedade". Em 1861, ele lançou as "Bases para la formación de una Liga Latino Americana", e L. M. Tisserand denominou como "l'Amérique Latine" o que até então se conhecia, na Europa, como Novo Mundo ou América do Sul.
Depois, o abade Emmanuel Domenech, no "Journal d'un Missionnaire au Texas et au Mexique 1846-1852", consolidou o conceito de América Latina como "le Mexique, l'Amérique Centrale et l'Amérique du Sud".
O conceito de América Latina, tal como Chevalier e Tisserand expressaram e difundiram, passou a integrar o panlatinismo, encapando as pretensões imperialistas de Napoleão 3º, que o buscou para legitimar a intervenção da França no México (1862-1867), onde entronizou o arquiduque Ferdinand Maximilian, identificando-a com os países ibero-americanos. E distanciou-se do sentido defensivo que lhe deram Torres Caicedo e Francisco Bilbao, em face da expansão dos EUA.
A idéia da América do Sul foi a que pautou desde o século 19 a política exterior do Brasil. O entendimento era de que havia duas Américas, distintas não tanto por suas origens étnicas ou de idiomas, mas pela geografia, com implicações econômicas e políticas, dado que o México e os países da América Central e Caribe estavam na órbita dos EUA. Essa proximidade torna o México dependente dos EUA, que absorvem mais de 90% do seu comércio e seus emigrantes legais e ilegais, cujas remessas de dinheiro constituem importante fonte de divisas. Os interesses do Brasil e do Mercosul são, portanto, distintos dos interesses do México, o que torna sem consistência geoeconômica e geopolítica o conceito de América Latina sacramentado após a Segunda Guerra.
No governo de Itamar Franco, o embaixador Celso Amorim voltou a enfatizar o conceito de América do Sul, começando a negociar acordos para a formação de uma Área de Livre Comércio da América do Sul (ALCSA), com o Mercosul como núcleo fundamental. E Fernando Henrique Cardoso convocou a Cúpula de Chefes de Governo da América do Sul, realizada em Brasília (2000), com o objetivo de "reafirmação da identidade própria da América do Sul como região", onde a "democracia e a paz abriam a perspectiva da integração cada vez mais intensa entre países que mantinham uma relação de vizinhança". Sua declaração de que o "Mercosul é mais que um mercado, o Mercosul é, para o Brasil, um destino", enquanto a Alca era "uma opção", repercutiu nos EUA e levou Henry Kissinger a constatar que o Mercosul estava propenso a apresentar as mesmas tendências manifestadas na União Européia, que buscava definir uma identidade política européia não apenas distinta dos EUA, mas em manifesta oposição aos EUA. Em sua obra "Does America Need a Diplomacy?", ele acentuou que a afirmação dessa "identidade própria, diferenciada da América do Norte, estava a criar um potencial debate entre Brasil e EUA sobre o futuro do Cone Sul".
O lançamento da Comunidade Sul-Americana de Nações, em Cuzco (2004), encorajado pelo presidente Lula e pelo chanceler Celso Amorim, teve um objetivo estratégico, confirmado pela convocação dos governantes da América do Sul para uma cúpula com os governantes dos países árabes. O Brasil, assim, demonstrou que visa tornar não a si próprio, mas a Comunidade Sul-Americana de Nações, uma potência mundial, econômica e política.
Com 360 milhões de habitantes, o equivalente a cerca de 67% de toda a América Latina e a 6% da população mundial, a América do Sul detém uma das maiores reservas de água doce e biodiversidade do planeta, de imensas riquezas minerais, pesca e agricultura. E não só sua população é maior que a dos EUA (293 milhões de habitantes); seu território (17 milhões Km2) é o dobro do americano (9,6 milhões Km2).
A integração do Mercosul com a Comunidade Andina de Nações e o Chile eleva a massa econômica da Comunidade Sul-Americana de Nações, segundo a paridade do poder de compra, ao montante de US$ 2.705,66 trilhões, maior do que O PIB da Alemanha (US$ 2.271 trilhões) e muito superior à soma do PIB do México (US$ 941,2 bilhões) e do Canadá (US$ 958,7 bilhões).
Luiz Alberto Moniz Bandeira, 69, cientista político, é professor titular aposentado da UnB e autor de, entre outras obras, "Brasil, Argentina e Estados Unidos (Da Tríplice Aliança ao Mercosul)".

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