São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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CLÓVIS ROSSI

A paisagem

SÃO PAULO - O que é ainda possível dizer sobre a matança de quatro moradores de rua em São Paulo? O primeiro instinto é considerar o episódio uma escalada da barbárie em que a cidade vem mergulhando já faz muito tempo.
Pode até ser, mas, em alguns dos países mais civilizados da Europa, crimes do gênero também ocorrem, até com mais freqüência.
Ou, posto de outra forma, a violência estúpida está, crescentemente, fazendo parte do DNA do gênero humano, em qualquer parte.
Há, em todo o caso, uma diferença importante. Em países europeus em que crimes do gênero foram praticados, o grau de indignação é maior. Ou há manifestações (que envolvem não apenas grupos mobilizados na defesa da cidadania, mas cidadãos comuns) ou há um rumor surdo de raiva pelo fato de gente "do bem" ser forçada a dividir o mesmo espaço geográfico com bestas.
No Brasil -e particularmente em São Paulo-, o teor de indignação é substancialmente menor, bastante mais diluído. É eloqüente, conforme o registro desta Folha, que apenas uma das candidatas à prefeitura da cidade (Luiza Erundina) tenha levado o caso ao programa eleitoral gratuito.
Fica uma nítida sensação de que pobreza, viver na rua, morrer na rua assassinado -tudo isso virou parte da paisagem da cidade (e do país). Parece tão inútil reagir como seria inútil reclamar que a serra do Mar está onde está ou que o rio Tietê corre na direção em que corre.
Temo até que algumas pessoas, em vez de indignação, sintam alívio. Quatro pobres a menos, quatro "problemas" a menos, oito mãos a menos para assaltar quem não é pobre nem mora na rua.
O brasileiro foi, devagar mas constantemente, abandonando a idéia de que o, digamos, normal é viver civilizada e gregariamente, para aceitar que a violência, todo tipo de violência, faz parte da paisagem tão inexoravelmente como o sol se pôr todos os dias. E fez-se uma longa noite.


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