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São Paulo, quarta-feira, 22 de outubro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O arquétipo da infantaria

MÁRCIO SANTILLI

A avaliação que o governo Lula faz de cada campo político é um redutor para a compreensão do que é a nossa sociedade. Ele olha para cada campo à procura de uma Central Única dos Trabalhadores e, quando não a encontra, conclui tratar-se de um segmento incapaz de constituir correlação de forças.
Não é um paradigma desprezível; todos reconhecemos a importância da CUT. E também sabemos que o pensamento de esquerda privilegia o protagonismo que o movimento operário tem quanto ao andar debaixo da sociedade. O governo reconhece empresários e sindicatos como interlocutores reais da sociedade e despreza, ou não consegue enxergar, outros atores relevantes na cena. Diante dessa deficiência de um setor político, o governo não lhe pode conceder sequer um adjetivo na formulação de política pública. Tal reducionismo só pode levar a erro. Esse equívoco fica claro quando se analisa o campo das política de minorias, como o socioambiental. O que aí existe são movimentos sociais de natureza plural, diferentes entre si.
Um exemplo disso foi a reação governamental ao desmatamento na Amazônia. Dados divulgados recentemente indicam um novo pico histórico da devastação, com tendência para avançar sobre o atual mandato presidencial. Também indicam que o arco do desmatamento se expande para novas regiões, como o eixo da BR-163 (Cuiabá-Santarém), ameaçando em definitivo a contiguidade da floresta amazônica. Indicam, ainda, que cresceu a participação da produção de soja, altamente capitalizada, na conversão de floresta nativa.
Para enfrentar essa ameaça, o presidente criou um grupo de trabalho interministerial para sugerir providências, mas ainda não há sinal de resultados. Enquanto isso, quem manda na fronteira agrícola são os campeões do mogno ilegal e dos assassinatos de sindicalistas rurais. Poderosas frentes de grilagem aquecem o mercado de terras e ocupam as áreas públicas ainda disponíveis. Cidades expandem-se do dia para a noite, acolhendo fluxos de migrantes, sem disporem de nenhuma infra-estrutura urbana. Reproduz-se lá, em escala e ritmo ampliados, o modelo de ocupação predatório que produziu o nosso imenso passivo socioambiental e fez do Brasil o campeão mundial do desmatamento, colocando-nos entre os maiores emissores atuais de carbono para a atmosfera da Terra.



O campo socioambientalista já está mais do que inquieto, mas o governo não escuta o rufar desse tipo de tambor

Os índices de desmatamento da Amazônia constituem o mais poderoso indicador da saúde da política socioambiental brasileira para toda a opinião pública nacional e mundial. O governo corre o risco de detonar a sua credibilidade nesse campo político se não tiver resposta consistente para compatibilizar o superávit da balança com a sobrevivência da floresta. Em vez disso, olha para um lado e vê o poder do agronegócio. Do outro lado, não enxerga uma "central sindical" socioambiental, apenas ONGs e movimentos sociais relativamente esparsos, e tende a subestimar os alertas que vêm do seu Ministério do Meio Ambiente. Da mesma forma, o Plano Plurianual enviado ao Congresso Nacional pelo governo Lula insiste, por exemplo, em obras de infra-estrutura com grande potencial de danos ambientais, já criticadas por socioambientalistas no governo anterior.
O recente episódio dos transgênicos destampou a panela de pressão que mantinha o movimento socioambientalista, que não encontra condições para desenvolver estratégias propositivas, em silêncio. Empresários e governo monopolizam o poder econômico e político. Se ambos se juntam em torno de um projeto predatório, impõem o ritmo do jogo e obrigam o movimento a ir à luta, mesmo sem chances de vitória.
Se projetarmos o mesmo arquétipo da infantaria sobre outro tema socioambiental, como o indigenismo, parece que o governo olha para esse campo e enxerga um hospício, em que cada parte fala língua diferente. Porém, em momentos decisivos para questões importantes, como a pendente homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, as diferenças se dissipam e eventualmente Davi pode vencer Golias, haja visto a considerável lista de vitórias que essa área acumulou nos últimos 15 anos.
O campo socioambientalista já está mais do que inquieto, mas o governo não escuta o rufar desse tipo de tambor. Parece viver uma espécie de síndrome de São Tomé -precisa ver para crer. Mas, quando a mobilização reativa desse setor se torna visível, dada a sua própria natureza inorgânica, já não há como evitar o desgaste político: o leite estará derramado. Nem mesmo negociação, ou cooptação, pode evitar que se irradie uma onda forte de opinião.
Por tudo isso, o governo deveria relativizar leituras excessivamente hierarquizadas da sociedade, pois os espaços de "mangue" dela são muito vastos, a ponto de caracterizar o todo nacional mais pela exceção que pela regra. Talvez eles expliquem, melhor do que as centrais sindicais, como este povo consegue sobreviver e ainda sorrir, apesar de tudo. O governo deveria desobstruir seus ouvidos para escutar o sussurro de seu anjo, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, sempre abafado pelo estridente tilintar das moedas no mercado, mas que tem conteúdo mais precioso para que ele possa exercer seu papel de mediador dos conflitos socioambientais anunciados.

Márcio Santilli, 48, é membro do Conselho Diretor da ONG Instituto Socioambiental. Foi deputado federal pelo PMDB-SP (1983-87) e presidente da Funai (1995-96).


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