São Paulo, sexta-feira, 22 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DECISÃO DIFÍCIL

A discussão sobre o aborto, como não poderia deixar de ser, é cercada de aspectos emocionais, questões religiosas e dilemas morais. As reações que ela enseja são tão viscerais que dois magistrados do Supremo Tribunal Federal se desentenderam publicamente na sessão de anteontem que cassou, por sete votos a quatro, liminar do ministro Marco Aurélio Mello que permitia o aborto de fetos anencefálicos.
A maioria dos magistrados julgou que não se justificava a liminar "erga omnes" (válida para todos) que admitia a antecipação de nascimento de bebês anencefálicos, isto é, portadores de uma má-formação do tubo neural incompatível com a vida extra-uterina. O mérito da ação proposta pela Confederação Nacional de Trabalhadores em Saúde não foi ainda analisado, mas a cassação da liminar, no contexto de um intenso lobby de setores religiosos, sugere que são pequenas as chances de essa modalidade de aborto terapêutico ser aprovada em breve no STF.
Dado o caráter emocional dos debates, não é razoável esperar que os defensores de uma das posições convençam seus opositores com argumentos racionais. Daí a necessidade de lidar com a situação de forma pragmaticamente democrática.
Faz sentido a tese dos que defendem o aborto de feto anencefálico argumentando que é uma crueldade obrigar a mãe a levar adiante uma gravidez que certamente resultará numa criança natimorta. Também é respeitável a posição dos religiosos de querer ver a proteção à vida tutelada pela sociedade.
É preciso, porém, observar que nem para a Igreja Católica a defesa da vida é um valor absoluto. Roma não condena a pena de morte e admite a noção de "guerra justa". No mais, a legislação brasileira já admite, desde 1940, a realização desse procedimento em casos de estupro e de risco de vida para a gestante.
A impossibilidade de extrair desse impasse uma solução de compromisso sugere que o mais sábio seria, no caso em debate, transferir a decisão, difícil e pessoal, para os pais. O Supremo, lamentavelmente, perdeu essa ocasião anteontem.


Texto Anterior: Editoriais: IMAGEM CORRUPTA
Próximo Texto: Lisboa - Clóvis Rossi: A vitória do medo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.