São Paulo, sexta-feira, 22 de outubro de 2004

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ELIANE CANTANHÊDE

Chegou a hora

BRASÍLIA - Por e-mail, um leitor reclamou que nós, da imprensa, só fizemos aquela confusão em 75 e estamos fazendo agora porque Vladimir Herzog, assassinado no DOI-Codi de São Paulo, era jornalista. Na opinião do leitor, ele era só mais uma vítima.
O fato de Vlado ser jornalista pesou, vá lá, mas há toneladas de razões para sua morte ser um marco no início do fim do regime militar. A tortura é abominável em qualquer hipótese, mas Vlado foi o mártir certo na hora certa. Tinha um cargo importante numa TV pública, não era militante ativo, não pegava em armas, tinha endereço fixo, mulher e filhos. E apresentou-se espontaneamente.
Mais: o momento era propício a uma enorme repercussão. A rejeição da sociedade ao regime estava madura, as várias frentes de oposição convergiam e o governo Geisel duelava com a "linha dura".
Após 29 anos, Vlado volta ao centro da cena para mobilizar, incomodar, provocar, gerar ação e até revelar que forças ocultas ainda andam por aí desenterrando notas dos anos 70, sabe-se lá com que intenções.
A foto de Vlado enforcado a centímetros do chão virou um símbolo dos "anos de chumbo" e ajudou a mudar a história. As fotos que surgem agora, de um homem nu, humilhado, não devem ser dele nem de outro jornalista, e sim de um padre progressista. E mostram que a história não acabou.
Essas fotos e a semelhança com Vlado reabrem uma dor nacional que só vai passar definitivamente quando tudo estiver límpido, transparente. A tortura é o grau máximo da degradação, mas gestos sórdidos como fotografar a intimidade de pessoas para chantageá-las, pelo simples crime da discordância, também dizem tudo do caráter de um regime e de seus agentes.
Não, a imprensa não fez a confusão toda de 75 e não faz agora de novo porque Vlado era jornalista ou padre, mas simplesmente porque chegou a hora. Em 75, a hora do basta. Em 2004, a hora de escancarar toda a verdade. Até porque são os perseguidos e torturados que estão no poder.


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