São Paulo, sexta-feira, 22 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Com a cabeça no lugar

MARCOS NOBRE

O artigo de José Arthur Giannotti "Com a cabeça fria" (Folha, pág. A3, 17/10) procurou dar à eleição municipal de São Paulo caráter nacional. Segundo Giannotti, haveria o risco do monopólio do poder pelo PT. Esse risco viria a se somar a um outro, muito maior, que ameaçaria, segundo ele, o próprio jogo democrático, pois o PT estaria aparelhando o Estado com seus militantes e ameaçando a boa institucionalização dos partidos com sua atuação no Congresso. Por essas razões, Giannotti torce pela vitória de Serra em São Paulo, o que, ainda segundo ele, poderia contrabalançar esses riscos.
Mas Giannotti misturou problemas de diferentes naturezas e níveis. Ao "federalizar" a eleição municipal em São Paulo, acho que os seus argumentos perdem muito da força que poderiam ter. Não fosse isso, poderíamos ter uma boa discussão sobre um possível aparelhamento do Estado pelo PT em nível federal, por exemplo.
O que acontece parece não ser um "aparelhamento" no sentido que lhe dá Giannotti, mas uma significativa renovação da elite burocrática no Brasil, talvez só comparável àquela que sucedeu a Revolução de 1930. É um fenômeno novo, que merece atenção e discussão e que, a meu ver, não pode ser de saída qualificado de "aparelhamento". Nesse sentido, é muito mais provável e plausível que esteja se formando um novo "time de governo" que, como tal, deve funcionar segundo a lógica de alternância no poder. No contexto brasileiro, é o que pode significar "burocracia estável" sob o nosso presidencialismo.


Ao "federalizar" a eleição municipal, acho que os argumentos de Giannotti perdem muito da força que poderiam ter


Isso não significa que esse processo esteja isento de críticas nem que Giannotti não possa ter razão quanto a haver movimentos por parte do governo que podem ter conseqüências antidemocráticas, sendo a proposta (finada, espero) de criação do Conselho Nacional de Jornalismo a que tenha tido talvez a maior repercussão. Mas essas propostas formuladas ou apoiadas pelo governo encontraram forte resistência na opinião pública; conseguiram ser, até o momento, devidamente barradas e não podem ser ligadas imediatamente com o que Giannotti chama de "aparelhamento do Estado". Mais que isso, não parece possível ligar tais iniciativas do governo à eleição municipal de São Paulo, como pretende Giannotti.
Compreende-se que Giannotti não queira ver um quadro da capacidade de Serra fora do jogo político. Compreende-se também que Giannotti torça pela vitória de Serra para impedir uma maior "direitização" do PSDB. Mas nada disso tem a ver com a administração da cidade de São Paulo.
Se mantivermos a cabeça não só fria, mas também no lugar (na cidade de São Paulo, no caso), é preciso dar à gestão de Marta na prefeitura o que lhe cabe de direito. Essa gestão fez avançar significativamente um movimento que as gestões de Mário Covas e de Luiza Erundina não conseguiram completar: por palavras e atos, fazer da periferia parte integrante da cidade. Não se trata simplesmente de "fazer obras" na periferia, mas de a cidade aparecer como o todo que é, e não apenas como aquilo que os paulistanos chamam de "centro expandido da capital". Com Marta, a visão que São Paulo tem de si mesma se modificou: a periferia deixou de ser um "apêndice" da cidade que, às vezes, dá apendicite.
Tal parece ser o grande avanço da gestão de Marta. É um ganho democrático e de solidariedade inestimável. O máximo a que Serra pode aspirar é fazer uma gestão tão boa quanto a de Marta. Mas, nesse caso, por que mesmo deveríamos torcer pela vitória de Serra?

Marcos Nobre é professor de filosofia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e pesquisador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).


Texto Anterior:
TENDÊNCIAS/DEBATES
Cesar Maia: A esquerda mecânica

Próximo Texto:
Painel do leitor

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.