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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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LIMBO JURÍDICO

Com o início da guerra e a captura de soldados iraquianos pelos exércitos anglo-americanos, coloca-se a questão do tratamento que será dispensado a esses prisioneiros. Até por razões políticas, os soldados e o baixo oficialato das forças de Saddam Hussein deverão ser relativamente bem-tratados.
A questão muda de figura quando se pensa no destino dos oficiais mais graduados e colaboradores próximos de Saddam Hussein. Não há dúvida de que muitos deles cometeram crimes terríveis -como o ataque com armas químicas contra a população curda de Halabja, em 1988- e merecem ser julgados por seus atos.
O ideal seria que esses réus fossem encaminhados para algum tribunal "ad hoc" das Nações Unidas ou para o Tribunal Penal Internacional, embora essa possibilidade pareça muito remota diante das novas e das velhas rusgas entre Washington e a ONU. O mais provável é que os EUA providenciem o julgamento desses acusados em cortes militares de exceção.
Em termos de direitos humanos, as perspectivas são as piores possíveis. O que os EUA vêm fazendo com os prisioneiros capturados no Afeganistão é uma afronta às leis da paz e da guerra. E não é apenas o governo. O Judiciário norte-americano, outrora conhecido por sua tradição de independência, está, ainda que não uniformemente, corroborando os abusos perpetrados pelo Executivo.
Foi particularmente chocante a recente decisão de um tribunal federal de apelações de Washington. Segundo o acórdão, publicado no último dia 13, um grupo -12 cidadãos kuaitianos, dois australianos e dois britânicos- preso na base norte-americana de Guantánamo (Cuba) não pode recorrer à Justiça dos EUA para contestar a legalidade de sua prisão nem para protestar contra as condições de seu confinamento. A corte afirmou que os tribunais americanos não têm jurisdição sobre seu caso.
O episódio ganha ares surrealistas nas palavras de um dos magistrados: "Eles não podem pedir sua libertação com base em violações à Constituição dos EUA ou a tratados ou à lei federal; os tribunais não estão abertos para eles", escreveu o juiz A. Raymond, da Corte de Apelações para o Distrito de Columbia. "Não vemos por que, ou como, o habeas corpus poderia estar disponível a estrangeiros fora dos EUA quando proteções constitucionais básicas não estão", continua Raymond.
Se prisioneiros capturados por militares dos EUA, sob custódia de forças norte-americanas e numa base que ostenta a bandeira do país não estão sob jurisdição americana, a quem então estarão sujeitos? As consequências lógicas dessa sentença não são triviais: os detidos ficam numa espécie de limbo jurídico; não estão sob proteção de legislação nenhuma, o que tornaria lícito a seus captores deles fazer o que bem entender sem ter de prestar contas a ninguém. Levado ao extremo o raciocínio, os prisioneiros poderiam até mesmo ser exterminados sem ter nem mesmo direito a julgamento.
Que os "falcões" de George W. Bush defendam idéias desse calibre, não surpreende. Que o Judiciário dos EUA acate esses equívocos é um sinal preocupante de que a democracia americana pode estar em perigo.


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