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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Estado e o crime organizado

LUIZ ANTONIO GUIMARÃES MARREY

O Estado de Direito democrático pressupõe, como uma de suas características essenciais, o monopólio legítimo do uso da força. Esse monopólio, consentido pela sociedade, deve ser exercitado segundo regras prefixadas, estabelecidas em lei, o que o diferencia do simples exercício da força bruta, própria de criminosos e organizações a eles ligadas.
O exercício da repressão penal não deve ser associado a regimes autoritários, já que constitui fator indispensável à tranquilidade social e à solução pacífica dos conflitos, não podendo a democracia dele prescindir.
O assassinato do promotor de Justiça Francisco José Lins do Rego, em Belo Horizonte, em janeiro de 2002, e do juiz de direito Antonio José Machado Dias, em Presidente Prudente, na semana retrasada, significaram inequívoco desafio ao Estado e às suas instituições. E induzem a uma reflexão sobre como lidar, no regime democrático, com organizações criminosas que se atrevem a atacar a autoridade estatal.
A sociedade brasileira não mais tolera que, diante de episódios graves e lamentáveis como esses, a reação do Estado se limite a declarações retóricas de propósitos, sem nenhuma efetividade prática.
Nas décadas de 1970 e 80, a Itália enfrentou o desafio de combater a criminalidade organizada, intensificando a repressão penal sem abrir mão das liberdades públicas e garantias individuais. A exemplo do ocorrido naquele país, o Brasil, hoje, precisa resolver o dilema da política criminal do Estado, que tem oscilado entre a histeria e o abrandamento excessivo das leis penais, processuais e de execução criminal.
É necessário, para que o combate traga resultados, que os órgãos encarregados da persecução penal -a polícia, o Ministério Público e o Judiciário- atuem de forma coordenada, evitando que o corporativismo se sobreponha à eficácia. É indispensável a integração a essa luta dos órgãos do Estado encarregados da fiscalização de tributos e do sistema bancário, porque é sabido que somente com a paralisação dos fluxos financeiros que alimentam as organizações criminosas é que se obterá sucesso em seu desmantelamento.


Não é possível que a geração de superávits primários seja mais importante que a segurança dos cidadãos


Da mesma maneira, é fundamental que se proceda à revalorização da carreira dos policiais e dos agentes penitenciários, de maneira a superar a baixa auto-estima, a desmotivação e o desânimo de significativa parcela dessas carreiras. Mesmo porque é hipocrisia considerar que os profissionais encarregados dessas importantes funções possam desempenhá-las a contento sendo mal remunerados e sem o devido reconhecimento. No equilíbrio fiscal em que se empenha o Estado brasileiro, não é possível que a geração de superávits primários seja mais importante que a segurança e a vida dos cidadãos.
Por outro lado, não se pode admitir, sob pena de absoluta desmoralização da autoridade estatal, que estabelecimentos penitenciários se transformem em verdadeiros escritórios da criminalidade organizada, nos quais são planejados atentados a bomba, assassinatos, tráfico de entorpecentes, roubos de carga e toda espécie de atos criminosos.
Aos bandidos mais perigosos impõe-se uma disciplina mais rigorosa, com a alteração da Lei de Execuções Penais, de forma que o indivíduo que represente maior grau de periculosidade receba um tratamento diferenciado, para que os desiguais sejam tratados desigualmente, atingindo-se, assim, o pleno significado do princípio constitucional da igualdade. Também deve ser objeto de modificação o atual sistema de progressão de regime de cumprimento de pena para esses criminosos perigosos, tornando-o mais rigoroso, bem como se devem aperfeiçoar os mecanismos de avaliação da personalidade desses presos.
É preciso que façamos uma nova leitura da legislação penal, processual e de execução criminal. De modo a assegurar a punição efetiva dos criminosos, dando plena eficácia às funções preventiva e retributiva da pena e possibilitando uma política equilibrada, que afaste tanto reações emocionais quanto um garantismo radicalizado que paralise os órgãos incumbidos da repressão penal.
É essencial que o Estado garanta a segurança dos seus agentes que têm a função de reprimir as organizações criminosas, não subestimando o perigo que elas representam, como demonstrou a trágica realidade recente e como se viu tanto na Itália como na triste situação colombiana. Se a repressão penal deve ser feita para valer, muito além das meras declarações de intenções e de princípios, os meios materiais têm de ser alocados para tal enfrentamento, sob pena de a realidade continuar a mesma.
Ressalte-se o sentimento de desamparo de uma sociedade quando percebe que nem sequer as autoridades, que devem agir em seu nome para reprimir os criminosos, têm a tranquilidade necessária para o fazer.
O Estado democrático não pode hesitar em exercer sua autoridade na repressão às organizações criminosas e o momento é de demonstração de efetiva vontade política de as combater.

Luiz Antonio Guimarães Marrey, 47, é o procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo. Exerceu o mesmo cargo de 1996 a 2000 e foi presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça em 1997.


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