São Paulo, terça-feira, 23 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Padre Vaz e a pós-modernidade cristã

CANDIDO MENDES

A morte do padre Henrique Cláudio Lima Vaz, aos 80 anos, deixou-nos sem o filósofo que levou mais longe entre nós a reflexão pós-moderna em torno do existir cristão, no empenho radical de manter nos seus diferentes domínios a fé e a razão.
No pensador, não é só a vastidão da obra que importa, travejada na ontologia, na ética e, sobretudo, no estudo epistemológico, que o confronta a Derrida, a Foucault, a Ricoeur e nos deixa diante da questão crítica por excelência. Até onde o histórico condiciona a nossa experiência-limite e toda a pergunta pelo humano se constrói num espaço definido de inteligibilidade? Ou melhor, até onde o pós-moderno traduziria o começo de uma nova era ou "tempo-eixo", no conceito proposto por Karl Jaspers e adotado por nosso pensador?
Depararíamos hoje com uma alteração da arquitetura mesma da subjetividade, ou da representação, com seus reflexos sobre a visão de mundo e a linguagem, permitindo uma nova "gramática das coisas", como salienta o jesuíta.
Tratar-se-ia de superar o que denominaria de "tempo hermenêutico", em que vivemos o mundo clássico e a civilização ocidental, assentados numa essencial leitura da realidade, feita de textos superpostos, como permitiria, numa mesma atitude contemplativa, a abertura do livro da natureza, e do mundo, como fim e metaverdade.
Vaz vai invocar a fenomenologia e, sobretudo, as perguntas da "pré-compreensão" de Heidegger como primícias de uma nova etapa dessa busca do sentido, não só insistindo em que a dita "antiga mirada cósmica" fez da filosofia grega uma teologia fundamental, que se estenderia no pensamento ocidental até nossos dias, pelo próprio teilhardismo. Isso, antes da grande revolução metodológica imposta pelo Vaticano 2º e das perplexidades que o enfoque da realidade, a partir dos "sinais dos tempos", implicava.
O entusiasmo pela nova busca da lisibilidade do existencial mal se apercebeu dos problemas inéditos que o seu discernimento implicaria, de par com o "linguistic turn" em que, paralelamente, entrava a filosofia contemporânea.
Vaz denuncia o velho isomorfismo, que supunha as leituras superpostas da natureza e do sacral, impondo-se a distinção entre a "linguagem do mundo" e a "linguagem do espírito". Aplica-se a nova leitura de um evento em que não coincidem mais, como em todo o discurso do Ocidente, sinal e semiótica.
O jesuíta inspirou, mais que qualquer outra, a pergunta filosófica das gerações brasileiras confessionais de após 60, ao se investirem da exigência radical de uma "tomada de consciência" e, ao mesmo tempo, dos percalços em que nos deixava, pelo Vaticano 2º, a famosa Constituição "Gaudium et Spes".


O jesuíta inspirou, mais que qualquer outra, a pergunta filosófica das gerações brasileiras confessionais de após 60


Impossível, entre nós, encontrar melhor conhecedor de Platão como de Aristóteles. Fez a exegese das Idades Médias e restaurou o marco fundador de São Tomás, mesmo em face de Aristóteles, como pensador radical do ato de existir. Foi a Hegel para discutir as raízes mesmas de um pensamento sacral e sua laicização e reconheceu a "acuidade genial" de Nietzsche, quando assentou o seu "projeto titânico" de transmudação de todos os valores sobre a total transmudação do nosso ver.
Nesse remate, Teilhard de Chardin, em que se concentravam as esperanças de uma nova convergência contemporânea entre fé e razão, tornar-se-ia ainda cativo do esforço extremo, senão genial, mas obsoleto, de propor-nos uma leitura do mundo sobre a linguagem natural da analogia, entre os muitos planos da realidade governada, afinal, por um último "telos", ou "ponto ômega". O que está em causa para o padre é, neste nosso ver em que lemos a realidade e a configuramos, não termos saído, afinal, daquela contemplação, herdada da mirada cosmo-grega mediterrânea, a ter sua rigorosa continuidade na escolástica e no espelho do discurso do "cogito".
E o jesuíta, perguntando pela pertinência do chamado histórico do cristão, mesmo em tempos de um abate-limite da velha arquitetura da subjetividade, vai nos dar toda uma epistemologia dos cuidados do que seja aceitar uma leitura dos "sinais dos tempos" e perder-se nas muitas "salidas frustras" da generosidade selvagem do cristão, confrontada aos "empréstimos de linguagem".
Vaz foi o rigoroso repetidor das intuições geniais de Michel de Certeau, que teve a mirada certa para diagnosticar, no primeiro discurso dos "sinais dos tempos", feito por destroços de um "tempo-eixo" implodido pelos impulsos reivindicativos da generosidade. É desse prisma que a Igreja pós-conciliar passou, numa verdadeira teoria do conhecimento, a reconhecer como presos àquela linguagem de empréstimo conceitos como o de promoção ou de revolução, que não se entranhavam no sentido da metanóia ou da transformação.
Um filosofar que dê à linguagem o que é seu, antes de assentar o que cabe à razão ou à fé, encontraria a verdadeira perspectiva para discutir a laicização no processo histórico contemporâneo e coloca numa mesma pauta de desgarre existencial os extremos escatológicos do evento do homem, expresso em conceito-limite tanto de "alienação" quanto de "esperança", "angústia" ou "salvação".
O jesuíta libertou-nos de todo pietismo metafísico, contrabandeado sobre a instância da generosidade, ou toda a voga das fáceis aberturas ao outro, como suporte, à la Karl Barth, de uma neo-ontologia. Vendo no velho "tempo-eixo" o signo sempre da alegoria, na convergência entre a razão e a fé, não escondeu, por toda a vida, o entusiasmo com a gigantesca obra de Bultman, no escorço do universo simbólico, envolvente das conclusões do velho "cogito".
Tal como pôde repor os pressupostos dos temas de Altizer e da "morte de Deus" de há uma vintena. Contrapôs-lhes a propriedade de uma verdadeira crítica da "Teologia de Deus", vencido o labirinto da linguagem e do solipcismo, e de uma experiência distinta, do sagrado ou do religioso, em que se perdeu a antropologia contemporânea.


Candido Mendes, 74, é presidente do "senior board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco, membro da Academia Brasileira de Letras e reitor da Universidade Candido Mendes.



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