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CARLOS HEITOR CONY
A língua destravada
RIO DE JANEIRO - Tenho o mau hábito de apreciar oradores enxundiosos ou escalafobéticos -para usar
dois adjetivos fora de moda. Nada
me comove tanto do que ouvir um
sujeito imprecar contra tudo ou a favor de tudo, o conteúdo pouco me
importa, o que vale é a veemência, o
furacão verbal, o tom definitivo que
geralmente acaba com o "Tenho dito".
Fui criticado pela esquerda nacional quando, após uma temporada
em Cuba, disse que o mal da América
Latina não era o subdesenvolvimento, mas a retórica. O rosto apoplético,
a voz embargada, o suor escorrendo
pela testa, o bem anunciado, o mal
execrado.
Tive dificuldades de fala durante
anos e até hoje sou ruim de tribuna
ou mesa-redonda. Mas admiro aqueles que destravaram a língua e, como
num pentecostes particular, começam a falar torrencialmente. Lembro
um político importante que também
tivera problemas de fala na infância
e na mocidade. Um dia -ele próprio
contava isso-, sentiu uma repentina mobilidade na língua e começou a
fazer discursos enormes, sem pensar
muito no conteúdo, mas na forma.
Foi assim que, comemorando o aniversário de um dono de revistas, iniciou uma de suas frases, dizendo que
o produto do amigo era a maior publicação da cidade, do Estado, do
Brasil, do mundo... E aí percebeu que
ainda lhe restava fôlego e voz. Não
podia terminar deixando no ar o espaço para mais uma palavra. E como
já havia mencionado a cidade, o Estado, o país e o mundo, declarou que
a revista era a maior da galáxia.
Outro político também, movido pelo mesmo entusiasmo verbal e oratório, elogiando um escritor nacional
que ia mal das pernas e do estilo, considerou-o o maior "escriba do hemisfério", sem necessidade de explicitar
se o hemisfério era o Sul ou o Norte. A
dúvida era justificada, pois o escriba
em causa nascera no Brasil, mas morava na Europa.
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