UOL




São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

A língua destravada

RIO DE JANEIRO - Tenho o mau hábito de apreciar oradores enxundiosos ou escalafobéticos -para usar dois adjetivos fora de moda. Nada me comove tanto do que ouvir um sujeito imprecar contra tudo ou a favor de tudo, o conteúdo pouco me importa, o que vale é a veemência, o furacão verbal, o tom definitivo que geralmente acaba com o "Tenho dito".
Fui criticado pela esquerda nacional quando, após uma temporada em Cuba, disse que o mal da América Latina não era o subdesenvolvimento, mas a retórica. O rosto apoplético, a voz embargada, o suor escorrendo pela testa, o bem anunciado, o mal execrado.
Tive dificuldades de fala durante anos e até hoje sou ruim de tribuna ou mesa-redonda. Mas admiro aqueles que destravaram a língua e, como num pentecostes particular, começam a falar torrencialmente. Lembro um político importante que também tivera problemas de fala na infância e na mocidade. Um dia -ele próprio contava isso-, sentiu uma repentina mobilidade na língua e começou a fazer discursos enormes, sem pensar muito no conteúdo, mas na forma.
Foi assim que, comemorando o aniversário de um dono de revistas, iniciou uma de suas frases, dizendo que o produto do amigo era a maior publicação da cidade, do Estado, do Brasil, do mundo... E aí percebeu que ainda lhe restava fôlego e voz. Não podia terminar deixando no ar o espaço para mais uma palavra. E como já havia mencionado a cidade, o Estado, o país e o mundo, declarou que a revista era a maior da galáxia.
Outro político também, movido pelo mesmo entusiasmo verbal e oratório, elogiando um escritor nacional que ia mal das pernas e do estilo, considerou-o o maior "escriba do hemisfério", sem necessidade de explicitar se o hemisfério era o Sul ou o Norte. A dúvida era justificada, pois o escriba em causa nascera no Brasil, mas morava na Europa.


Texto Anterior: Brasília - Fernando Rodrigues: Ritmo alterado
Próximo Texto: Luciano Mendes de Almeida: Violência e terror, até quando?
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.