São Paulo, terça-feira, 23 de agosto de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

A todo vapor

RIO DE JANEIRO - Citar o poeta Murilo Mendes pode até parecer provocação. Num tempo em que os 15 minutos de fama estão sendo vividos por Delúbios, Valérios, Jeffersons, Dirceus et caterva, lembrar o poeta de Juiz de Fora é estar tão por fora como o juiz que deu nome àquela cidade.
E vou lembrar o poeta para discordar dele, veementemente, tal como fez o ministro Palocci a propósito de uma denúncia contra ele. Dizia Murilo Mendes que "o inferno existe, mas não funciona". Penso exatamente o contrário: o inferno não existe, mas funciona e funciona muitíssimo bem.
Nem preciso lembrar a sovadíssima conclusão a que Jean Paul Sartre chegou: "O inferno são os outros". Nem assim o inferno existe, pois os outros somos todos nós e, mesmo quando não dispomos de malignidade específica, somos chatos de alguma forma -e não há inferno mais devastador do que aturar chatos.
Apesar de não existir, o inferno é uma das instituições que mais e melhor funcionam, em tempo integral. Como certos vôos internacionais, na base do "non stop".
Se querem um exemplo -num tempo como o nosso, em que as provas são escassas e os crimes abundantes-, basta ligar a TV, ler as revistas e os jornais. É o inferno (que não existe) funcionando a todo vapor -a tradição garante que no inexistente inferno há caldeiras enormes e bastantes para produzir muito vapor.
Mas vamos e venhamos: mesmo que existisse, o inferno não poderia ser responsabilizado pelos escândalos agora descobertos nem pela metástase da corrupção que comprometeu todo o governo. Em sã consciência, nem mesmo o Roberto Jefferson, que acusou todo mundo, inclusive a si próprio, teve peito para acusar o demônio.
Contrariei o poeta Murilo Mendes e vou contrariar J.P. Sartre: o inferno não existe, mas funciona muito bem. Tampouco são os outros que o fazem funcionar. Sabemos os nomes e conhecemos as caras daqueles que alimentam as caldeiras, produzindo o vapor que nos queima e sufoca.


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