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TENDÊNCIAS/DEBATES
O ópio do povo
JORGE BOAVENTURA
A maioria dos nossos leitores certamente sabe que a designação que
intitula este artigo foi largamente empregada pelos marxistas de várias nuanças para se referir às religiões que, afirmando a existência de vida além da corpórea de que participamos, acenavam
com felicidade a ser nela alcançada, sobretudo pela prática de virtudes e disposições que entorpeciam ou anulavam o
espírito da "luta de classes".
Luta de classes, segundo eles, consequente à cosmovisão do materialismo
dialético. Não é este o momento -nem
o espaço disponível nos permitiria fazê-lo- para expor e discutir os fundamentos do referido materialismo nem a sua
disparatada pretensão de se constituir
na única visão realmente científica acerca da nossa e da realidade do mundo em
que vivemos.
Diremos apenas que, de fato, o mundo se apresenta em feição dialética, mas
não em uma dialética de oposição e de
luta inexoráveis, mas em uma dialética
de complementação, esta sim promotora de progresso e alicerçadora da paz indispensável à felicidade, que é o que os
humanos buscam alcançar. Maneira
que, certamente, todos começamos a
perceber, não é a oferecida por um consumismo exacerbado a ponto de, invertendo posições fundamentais da realidade objetiva, nos estar colocando na
disposição de viver para consumir.
Consumir não o realmente indispensável e benéfico, mas consumir por consumir, indefinida e freneticamente,
atendendo a exigências de um novo
deus chamado Mercado, a cujas "leis"
os homens devem obedecer, prosternados e inevitavelmente aflitos, de vez que,
em nós, a capacidade de desejar é ilimitada, e a de possuir efetivamente é, inexorável e indiscutivelmente, restrita.
Trata-se do sujeito subordinado ao
objeto, do criador oprimido pela criatura, erigida em ente autônomo, cuja existência não ocorreria não fora a ação do
seu criador, que, dotado de racionalidade e livre-arbítrio, certamente não agiria conscientemente para gerar algo que
o angustia, oprime e, em muitos aspectos, infelicita, por intermédio de competição gerada por egoísmo desagregador,
ao qual se devem conflitos violentos e
barbaridades sem conta.
Assim, parece-nos, a inversão que
acabamos de apontar, ela sim é denunciadora de alienação tão evidente e
grosseira que, para se manter e continuar a operar, exige a degradação dos
costumes, a desagregação da família, o
consumo das drogas, a prática sexual
animalizada e irresponsável -tudo feito em nome de uma liberdade que, deliberadamente, é proclamada e exigida
sem contornos nítidos quanto ao seu
exercício e às suas finalidades.
Escondem os sustentadores ocultos
do deus Mercado que, na conformidade
dos alicerces da nossa cultura, factualmente judaico-cristãos, a liberdade não
pode ser um ideal que se esgota em si
mesmo, espécie de absurda carta sem
conteúdo nítido e sem destinatário. Sobre ela, disse John Salisbury, "trata-se de um bem sublime, somente inferior à
virtude, se é que se pode falar de virtude
na ausência de liberdade ou de liberdade na ausência de virtude".
De fato, o mundo se apresenta em feição dialética, mas não em uma dialética de oposição e de luta inexoráveis
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Ora, na conformidade das nossas raízes culturais, certa ou erradamente, o
que corresponda, ou não, a virtude exige um referencial axiológico fixo, que
obviamente não nos pode ser oferecido pela opinião de maiorias eventuais e volúveis, de vez que maiorias não são fontes necessárias de verdade, não passando de método para a tomada de decisões, em muitos casos insubstituível -
nunca, porém, fonte de verdades indiscutíveis.
O episódio diante do pretório de Pilatos deveria ser, ao menos para os cristãos, a prova evidente do que acabamos
de afirmar. O pretor romano, que não
via culpa em Jesus, exercendo a forma
indiscutivelmente democrática de consulta à multidão, perguntou a ela o que
preferia: que fosse libertado Jesus ou
Barrabás, segundo ele, criminoso de
sangue. E a resposta da maioria esmagadora, então foi Barrabás.
Dizemos, portanto, novamente, que
alienadas estão sendo as multidões do
mundo angustiado, injusto, aflito e violento em que vivemos, na verdade, pela
entrega estimulada artificialmente a todos os apetites sensoriais, o ópio que se
tornou possível impor à maioria, desde
quando o art. 6º da "Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos", promulgada em 1791 em consequência da vitória da Revolução Francesa de 1789, estabeleceu que: "A lei é a
expressão da vontade geral, manifestada diretamente ou por intermédio de
representantes". Em outros artigos garantia-se que "ninguém seria obrigado
a fazer, ou a deixar de fazer qualquer
coisa, a não ser em virtude de lei".
Como pode perceber a inteligência do
leitor, embutida em aparência tão justa
estava a consagração totalmente equivocada da opinião de maiorias eventuais e volúveis, como fontes da verdade. Totalmente equivocada do ponto de
vista factualmente indiscutível das raízes culturais de que brotou a nossa civilização, agora, pensamos em irreversível declínio.
Como traficante desse novo e terrível
ópio do povo está, supomos, o poder
mundial ainda não totalmente explícito,
mas cuja existência o mundo inteiro começa a perceber, e que age sempre em
nome de uma democracia que nada tem
a ver com o ideal democrático, baseada
nos equívocos de que estamos tratando
e que estamos oferecendo à análise pela
inteligência e consciência dos leitores.
Aliás, um dos principais baluartes
dessa "democracia", que cada vez mais
a revela como uma prostituta devassa,
entregue ao império de todos os apetites, é o Reino Unido, que no século 19
fez guerra à China para obrigar o seu
povo a consumir o ópio propriamente
dito, que o sereníssimo e "democrático"
reino lhe vendia.
Jorge Boaventura de Souza e Silva, 80, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da Escola Superior de Guerra.
Site: www.jorgeboaventura.jor.br
E-mail: brasil@jorgeboaventura.jor.br
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