São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O ópio do povo

JORGE BOAVENTURA

A maioria dos nossos leitores certamente sabe que a designação que intitula este artigo foi largamente empregada pelos marxistas de várias nuanças para se referir às religiões que, afirmando a existência de vida além da corpórea de que participamos, acenavam com felicidade a ser nela alcançada, sobretudo pela prática de virtudes e disposições que entorpeciam ou anulavam o espírito da "luta de classes".
Luta de classes, segundo eles, consequente à cosmovisão do materialismo dialético. Não é este o momento -nem o espaço disponível nos permitiria fazê-lo- para expor e discutir os fundamentos do referido materialismo nem a sua disparatada pretensão de se constituir na única visão realmente científica acerca da nossa e da realidade do mundo em que vivemos.
Diremos apenas que, de fato, o mundo se apresenta em feição dialética, mas não em uma dialética de oposição e de luta inexoráveis, mas em uma dialética de complementação, esta sim promotora de progresso e alicerçadora da paz indispensável à felicidade, que é o que os humanos buscam alcançar. Maneira que, certamente, todos começamos a perceber, não é a oferecida por um consumismo exacerbado a ponto de, invertendo posições fundamentais da realidade objetiva, nos estar colocando na disposição de viver para consumir.
Consumir não o realmente indispensável e benéfico, mas consumir por consumir, indefinida e freneticamente, atendendo a exigências de um novo deus chamado Mercado, a cujas "leis" os homens devem obedecer, prosternados e inevitavelmente aflitos, de vez que, em nós, a capacidade de desejar é ilimitada, e a de possuir efetivamente é, inexorável e indiscutivelmente, restrita.
Trata-se do sujeito subordinado ao objeto, do criador oprimido pela criatura, erigida em ente autônomo, cuja existência não ocorreria não fora a ação do seu criador, que, dotado de racionalidade e livre-arbítrio, certamente não agiria conscientemente para gerar algo que o angustia, oprime e, em muitos aspectos, infelicita, por intermédio de competição gerada por egoísmo desagregador, ao qual se devem conflitos violentos e barbaridades sem conta.
Assim, parece-nos, a inversão que acabamos de apontar, ela sim é denunciadora de alienação tão evidente e grosseira que, para se manter e continuar a operar, exige a degradação dos costumes, a desagregação da família, o consumo das drogas, a prática sexual animalizada e irresponsável -tudo feito em nome de uma liberdade que, deliberadamente, é proclamada e exigida sem contornos nítidos quanto ao seu exercício e às suas finalidades.
Escondem os sustentadores ocultos do deus Mercado que, na conformidade dos alicerces da nossa cultura, factualmente judaico-cristãos, a liberdade não pode ser um ideal que se esgota em si mesmo, espécie de absurda carta sem conteúdo nítido e sem destinatário. Sobre ela, disse John Salisbury, "trata-se de um bem sublime, somente inferior à virtude, se é que se pode falar de virtude na ausência de liberdade ou de liberdade na ausência de virtude".


De fato, o mundo se apresenta em feição dialética, mas não em uma dialética de oposição e de luta inexoráveis


Ora, na conformidade das nossas raízes culturais, certa ou erradamente, o que corresponda, ou não, a virtude exige um referencial axiológico fixo, que obviamente não nos pode ser oferecido pela opinião de maiorias eventuais e volúveis, de vez que maiorias não são fontes necessárias de verdade, não passando de método para a tomada de decisões, em muitos casos insubstituível - nunca, porém, fonte de verdades indiscutíveis.
O episódio diante do pretório de Pilatos deveria ser, ao menos para os cristãos, a prova evidente do que acabamos de afirmar. O pretor romano, que não via culpa em Jesus, exercendo a forma indiscutivelmente democrática de consulta à multidão, perguntou a ela o que preferia: que fosse libertado Jesus ou Barrabás, segundo ele, criminoso de sangue. E a resposta da maioria esmagadora, então foi Barrabás.
Dizemos, portanto, novamente, que alienadas estão sendo as multidões do mundo angustiado, injusto, aflito e violento em que vivemos, na verdade, pela entrega estimulada artificialmente a todos os apetites sensoriais, o ópio que se tornou possível impor à maioria, desde quando o art. 6º da "Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos", promulgada em 1791 em consequência da vitória da Revolução Francesa de 1789, estabeleceu que: "A lei é a expressão da vontade geral, manifestada diretamente ou por intermédio de representantes". Em outros artigos garantia-se que "ninguém seria obrigado a fazer, ou a deixar de fazer qualquer coisa, a não ser em virtude de lei".
Como pode perceber a inteligência do leitor, embutida em aparência tão justa estava a consagração totalmente equivocada da opinião de maiorias eventuais e volúveis, como fontes da verdade. Totalmente equivocada do ponto de vista factualmente indiscutível das raízes culturais de que brotou a nossa civilização, agora, pensamos em irreversível declínio.
Como traficante desse novo e terrível ópio do povo está, supomos, o poder mundial ainda não totalmente explícito, mas cuja existência o mundo inteiro começa a perceber, e que age sempre em nome de uma democracia que nada tem a ver com o ideal democrático, baseada nos equívocos de que estamos tratando e que estamos oferecendo à análise pela inteligência e consciência dos leitores.
Aliás, um dos principais baluartes dessa "democracia", que cada vez mais a revela como uma prostituta devassa, entregue ao império de todos os apetites, é o Reino Unido, que no século 19 fez guerra à China para obrigar o seu povo a consumir o ópio propriamente dito, que o sereníssimo e "democrático" reino lhe vendia.


Jorge Boaventura de Souza e Silva, 80, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da Escola Superior de Guerra.
Site: www.jorgeboaventura.jor.br
E-mail: brasil@jorgeboaventura.jor.br



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