São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

Toda uma mulher

RIO DE JANEIRO - Gabriel García Márquez disse que precisava de um ano para escrever um livro de 400 páginas. Confessou que a mesma história, em forma de bolero, poderia ser escrita em meia hora e no espaço de três minutos e meio, tamanho de uma faixa musical.
A atualidade brasileira anda muito redundante, com os mesmos personagens e as mesmas mutretas. Hoje é domingo e vou descansar, falando de bolero -um assunto que já passou de moda.
O tango é o hino da dor de cotovelo, dos cabelos desgrenhados, da fuga das amadas. As guarânias se institucionalizaram como as canções da distância. Parentes próximas do samba, as rumbas continham aquela dose de sacanagem crioula, de quadris violentos, excitava a luxúria de diversas gerações.
E o samba, por ser coisa nossa, ficou na base do instantâneo, da piada, precisamos de uma roupa para ir ao samba que alguém nos convidou. "Amélia" é uma crônica, não é uma mulher -embora seja dito que ela era mulher de verdade.
Mulher mesmo, só o bolero soube cantar. O nudo de los braços, o frenesi, a perfídia, as noches de ronda -tudo cheira a fêmea, e cheira bem. O gênero envelheceu, cantaram-se novos temas, até Jesus Cristo virou superstar em ritmo pop. Aprecio o nosso Salvador, mas aprecio muito mais a mulher.
Volta e meia, quando me afundo em fossas retroativas, gosto daquele repertório cafona de Agostín Lara e Maria Gréver, a obra quase erudita de Ernesto Lecuona. Não há trilha musical mais autêntica para cantar a mulher, principalmente a mulher dos outros, a mulher-mulher, "sensitiva mujer de alabastro". Aquela que nos visita nos momentos de delírio e que às vezes nos visita mesmo, em carne e osso -mais carne do que osso-, e sempre fluida, incerta, toda.

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