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CARLOS HEITOR CONY
Toda uma mulher
RIO DE JANEIRO - Gabriel García Márquez disse que precisava de
um ano para escrever um livro de
400 páginas. Confessou que a mesma história, em forma de bolero,
poderia ser escrita em meia hora e
no espaço de três minutos e meio,
tamanho de uma faixa musical.
A atualidade brasileira anda muito redundante, com os mesmos personagens e as mesmas mutretas.
Hoje é domingo e vou descansar, falando de bolero -um assunto que já
passou de moda.
O tango é o hino da dor de cotovelo, dos cabelos desgrenhados, da fuga das amadas. As guarânias se institucionalizaram como as canções
da distância. Parentes próximas do
samba, as rumbas continham aquela dose de sacanagem crioula, de
quadris violentos, excitava a luxúria de diversas gerações.
E o samba, por ser coisa nossa, ficou na base do instantâneo, da piada, precisamos de uma roupa para
ir ao samba que alguém nos convidou. "Amélia" é uma crônica, não é
uma mulher -embora seja dito que
ela era mulher de verdade.
Mulher mesmo, só o bolero soube
cantar. O nudo de los braços, o frenesi, a perfídia, as noches de ronda
-tudo cheira a fêmea, e cheira bem.
O gênero envelheceu, cantaram-se
novos temas, até Jesus Cristo virou
superstar em ritmo pop. Aprecio o
nosso Salvador, mas aprecio muito
mais a mulher.
Volta e meia, quando me afundo
em fossas retroativas, gosto daquele repertório cafona de Agostín Lara e Maria Gréver, a obra quase erudita de Ernesto Lecuona. Não há
trilha musical mais autêntica para
cantar a mulher, principalmente a
mulher dos outros, a mulher-mulher, "sensitiva mujer de alabastro".
Aquela que nos visita nos momentos de delírio e que às vezes nos visita mesmo, em carne e osso -mais
carne do que osso-, e sempre fluida, incerta, toda.
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