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FERNANDO DE BARROS E SILVA
Retrato de época
SÃO PAULO - Quis o acaso (ou talvez o destino) que o acordo entre
PT e PMDB em torno da candidatura presidencial de Dilma Rousseff
fosse selado no mesmo dia em que a
ministra negou a existência do
mensalão. Ao depor como testemunha de dois réus, ela afirmou: "Isso
[o mensalão] não aconteceu, até
porque era impossível". E acrescentou que José Dirceu, cassado pela
Câmara depois de renunciar à Casa
Civil, foi "uma pessoa injustiçada".
Os episódios eram independentes, mas havia um fio da meada: a
maneira como Dilma olha para o
passado projeta a visão que tem do
futuro. O mesmo padrão ético que a
ministra endossava à tarde ao negar
o mensalão seria simbolicamente
recontratado à noite, no jantar de
gala entre PT e PMDB no Alvorada.
Tudo isso passou meio despercebido e tende agora a ser ofuscado de
vez pela frase de efeito de Lula, na
entrevista de ontem à Folha, segundo a qual, no Brasil, mesmo Jesus precisaria se aliar a Judas para governar. Afora o apelo da imagem
religiosa, parte do repertório colorido do lulês, a ideia não é nova
nem deveria nos ouriçar tanto.
De Getúlio Vargas a Fernando
Henrique Cardoso, a política brasileira, quando bem-sucedida no
tempo, sempre teve vocação conciliadora e se fez à base de concessões. Jânio Quadros e Fernando
Collor seriam os contraexemplos.
Então vale tudo? Também não.
As relações entre política e moral
são complexas. A primeira não é
uma luta entre o bem e o mal, mas o
terreno da escolha entre o preferível e o detestável, como dizia o pensador liberal Raymond Aron.
Quando o deputado Judas é flagrado no caixa não contabilizado de
Delúbio Soares, temos aí um problema sério -e Jesus sabe disso.
Dilma, com sua retórica revisionista, de que nunca houve mensalão, parece querer transformar o
detestável em preferível. Dirceu
não é "o injustiçado"? O que ela faz
é apenas usar a popularidade atual
de Lula para tentar reescrever o
passado. Corrigi-lo é mais difícil.
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