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São Paulo, segunda-feira, 24 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Estado e criminalidade

MARCO ANTONIO RODRIGUES NAHUM

A vida de uma pessoa constitui um patrimônio de valor inestimável e a ninguém é dado o direito de tirá-la, qualquer que seja a razão pretensamente justificadora disso. Nem por parte do Estado e muito menos de particulares.
Alceu Amoroso Lima nos fala dos aspectos críticos da morte de Sócrates ("Apologia de Sócrates", ed. Ediouro, Introdução): "A mais alta voz do paganismo se antecipava, como um profeta desconhecido, à mais alta voz do cristianismo", disse ele. "Nunca a dignidade do homem, a liberdade de consciência, a defesa da verdade, da justiça, da virtude, a serenidade perante a morte, a humildade de espírito e a grandeza de alma, a compreensão e a fortaleza de ânimo, a coragem sem jactância, nunca um pensamento tão alto, uma lição tão profunda foram dados por um homem aos homens em termos perfeitamente belos."
E anota os instantes finais da vida do grande filósofo, que ingressava tranquilamente não na morte, mas na eternidade, "não com lágrimas nos olhos, mas com um sorriso nos lábios, condenando, para sempre, na pessoa dos seus algozes, a arrogância dos fanáticos, a violência dos medíocres e a implacabilidade dos primários".
Não era o padre Antonio Vieira, em uma de suas mais celebradas homilias, quem falava da justiça da morte, que a todos nos leva consigo na derradeira viagem? E não era ele mesmo que falava também de sua injustiça, quando leva pessoas que, a nosso limitado ver, ainda deveriam estar longe do momento dessa partida?


A infiltração do crime organizado na intimidade dos poderes tem o condão de torná-los inoperantes


O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais manifesta, neste momento, como não poderia deixar de manifestar, seu profundo pesar pelo assassinato do magistrado dr. Antônio José Machado Dias, juiz-corregedor da região de Presidente Prudente, e se solidariza, neste momento tão sofrido, com sua família, cuja dor por sua perda jamais poderemos aquilatar ou diminuir.
É de todo necessário que as autoridades policiais do Estado façam uma rigorosa investigação, a fim de apurar as causas e os motivos da ação criminosa que não só levou àquela morte, como vem causando à nossa sociedade perdas de vidas que, muitas vezes, restam esquecidas no anonimato.
Sente, porém, o mesmo IBCCrim ser de seu dever enfatizar que a questão do crime organizado -que, por sinal, está inapropriadamente tipificado no direito penal brasileiro- não se resume, com exclusividade, à violência desregrada de grupos formados para a prática ostensiva de delitos, pois ele também se caracteriza por sua íntima conexão com o problema da corrupção, o que envolve a participação de agentes do Estado em tais nefandas práticas. A infiltração do crime organizado na intimidade dos próprios poderes republicanos tem o óbvio condão de torná-los inoperantes, de forma a criar impunidade, que já se encontra em nível insuportável.
Discutir em profundidade essa matéria torna-se, portanto, providência inadiável, como não padece dúvida. Entretanto, entendemos que não será em clima de emocionalismo e de irracionalidade, que os meios de comunicação já começam a emprestar à problemática do crime organizado, que se tornará possível enfrentá-la com eficácia.
Uma vez mais mostra-se pertinente a afirmação de que a criação de figuras criminais típicas, com penas exacerbadas, ou de uma atmosfera repressiva ao arrepio dos princípios constitucionais que regem o Estado democrático de Direito não bastam para conduzir à transformação substancial dessa realidade.
É da experiência de todos nós que a demanda por mais e mais penas não produziu a redução da taxa de incidência de delitos que os arautos dessa filosofia repressora aguardavam. Os crimes hediondos aumentam em quantidade assustadora, não obstante a gravidade das sanções cominadas; a tortura continua a existir de modo crescente, sem que nenhuma autoridade lhe ponha termo; os homicídios realizados por grupos de extermínio, denunciados pela imprensa, são praticados sem nenhum tipo de punição; e a corrupção dá mostras de sua presença em todas as áreas dos Poderes do Estado.
O IBCCrim entende ser este momento uma extraordinária oportunidade para que se discutam, com seriedade, a violência e a corrupção, que estão ínsitas no conceito de crime organizado, e se põe à disposição de nossas autoridades para tratar dessa matéria, com a seriedade que um tema dessa importância exige.
Não concorda, portanto, que o fato gerador da presente situação sirva de pretexto para legitimar agressões à Constituição e à Lei de Execução Penal ou para deixar em plano secundário a apuração de fatos extremamente graves atribuídos às autoridades judiciárias, policiais civis e policiais militares do Estado de São Paulo, tais como os que envolveram a chamada "Operação Castelinho", patrocinados por grupo especial da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (Gradi), e a atuação de grupos de extermínio, também envolvendo policiais civis e militares, como os que teriam ocorrido nas cidades de Ribeirão Preto e de Guarulhos e que culminaram com o afastamento do delegado-corregedor da Polícia Civil.
Recordando Tristão de Ataíde, o grande advogado dos direitos humanos, esperamos que o estudo de um tema de tanta relevância se faça sem a arrogância dos fanáticos, sem a violência dos medíocres e sem a implacabilidade dos primários.

Marco Antonio Rodrigues Nahum, 58, juiz do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, é presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).


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