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É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti?
NÃO
O Haiti não é aqui
RICARDO SEITENFUS
A HIPOTÉTICA retirada do Brasil das forças que compõem a
Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti provocaria
dois desastres e uma constatação.
O primeiro dos desastres afetaria
de modo direto e profundo o que foi
até então arduamente construído no
Haiti. Os países latino-americanos
contribuem com 50% dos efetivos
militares, civis e policiais. Parte deles,
por certo, revisaria sua posição, abandonando à própria sorte aquele país.
Comprometida a presença da ONU
na parte ocidental da ilha de Ispaniola, o recrudescimento da instabilidade política desembocaria no retorno
ao autoritarismo, como tem ocorrido
desde 1986, salvo se a idéia esdrúxula
e imoral de submeter o Haiti ao regime de protetorado das grandes potências venha a ser admitida.
Para a população do país mais pobre das Américas, a ausência da Minustah significaria o retorno a um
passado de repressão, ausência de liberdades mínimas, desrespeito aos
direitos humanos fundamentais e
maior retrocesso econômico. A porta
estaria escancarada para que os eternos aventureiros e opressores do povo, entre eles notórios traficantes,
torturadores e assassinos, retomassem as rédeas do poder.
O segundo desastre seria brasileiro.
Qual seria a justificativa -a não ser o
decantado egoísmo nacional- apta a
explicar o abandono de um povo cujas
raízes são compartilhadas por ponderável parcela de nossa população? Como explicar às opiniões públicas nacional, internacional e haitiana que o
Brasil, respeitado, amado e venerado
pelo povo mártir da antiga pérola das
Antilhas, dê-lhes as costas num momento de tal gravidade? O que seria
da diplomacia cooperativa e solidária
brasileira? Qual seria o futuro do enfoque Sul-Sul, dos projetos do Ibas e
da respeitabilidade cada vez maior da
palavra brasileira no concerto das nações? A resposta é uma só: após a surpresa, a decepção e, a seguir, o menosprezo com que seria avaliado o conjunto da nossa atuação internacional.
Além dos desastres, o abandono do
Haiti traria uma constatação: nossa
incapacidade de resolver problemas
regionais. Desde 1945, o fenômeno da
guerra, sob todas as suas formas, migrou do Norte para o Sul do hemisfério, sem com ela aportar os mecanismos para preveni-la e solucioná-la,
que continuam com as potências. Os
países do Sul seguem oferecendo o
palco e as vítimas dos conflitos atuais.
A crise do Haiti, se resolvida, poderia
constituir novo modelo de solução de
conflitos em que, pela primeira vez,
nós exercemos o papel central.
Há muito, propugno que a crise haitiana, antes de ser política e securitária, é provocada pela desesperança,
pela miséria, pelo descalabro administrativo, pela ausência de Estado,
pelo vazio jurídico-institucional e pelas condições infra-humanas em que
vegeta parte ponderável da população. Três dados ilustram a situação:
dos 3.341 detentos da Penitenciária
Nacional, em Porto Príncipe, tão-só
112 foram condenados. O restante está em "detenção provisória prolongada", que pode estender-se por vários
anos; 80% da população ativa está desempregada; há 250 mil crianças em
regime de escravidão (os pouco conhecidos e abandonados "restavecs").
Ante esse doloroso quadro, as características da presença brasileira e
da comunidade internacional no Haiti devem ser repensadas. Em paralelo
à formação da Polícia Nacional Haitiana e à garantia de um nível mínimo
de segurança, é fundamental e urgente empreender ações que reavivem a
economia da ilha. Às duas dezenas de
projetos brasileiros bem-sucedidos
devem se somar outras centenas. Porém, é indispensável que sejam auto-sustentáveis e se beneficiem da cooperação financeira dos países desenvolvidos. A cooperação triangular é a
chave do sucesso e da solidariedade.
Há quem diga que o Brasil deve
prioritariamente olhar para seus próprios problemas sociais. Quem já foi
ao Haiti, porém, do soldado ao ministro, sabe que uma luta contra a pobreza não exclui a outra e que a solidariedade internacional só reforça a interna. A pergunta talvez não seja se o
Haiti "é aqui" ou "não é aqui", como
no verso de Gil e Caetano, mas, sim,
onde se encontra o Brasil em relação
ao mundo, que necessita, mais do que
nunca, de nossa participação pacífica
e criativa.
RICARDO SEITENFUS, 60, doutor em relações internacionais, integrou várias missões ao Haiti. É coordenador do
projeto www.brasilhaiti.com e autor do livro "Haiti, a Soberania dos Ditadores", entre outras obras.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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