São Paulo, sábado, 24 de maio de 2008

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É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti?

NÃO

O Haiti não é aqui

RICARDO SEITENFUS

A HIPOTÉTICA retirada do Brasil das forças que compõem a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti provocaria dois desastres e uma constatação.
O primeiro dos desastres afetaria de modo direto e profundo o que foi até então arduamente construído no Haiti. Os países latino-americanos contribuem com 50% dos efetivos militares, civis e policiais. Parte deles, por certo, revisaria sua posição, abandonando à própria sorte aquele país.
Comprometida a presença da ONU na parte ocidental da ilha de Ispaniola, o recrudescimento da instabilidade política desembocaria no retorno ao autoritarismo, como tem ocorrido desde 1986, salvo se a idéia esdrúxula e imoral de submeter o Haiti ao regime de protetorado das grandes potências venha a ser admitida.
Para a população do país mais pobre das Américas, a ausência da Minustah significaria o retorno a um passado de repressão, ausência de liberdades mínimas, desrespeito aos direitos humanos fundamentais e maior retrocesso econômico. A porta estaria escancarada para que os eternos aventureiros e opressores do povo, entre eles notórios traficantes, torturadores e assassinos, retomassem as rédeas do poder. O segundo desastre seria brasileiro.
Qual seria a justificativa -a não ser o decantado egoísmo nacional- apta a explicar o abandono de um povo cujas raízes são compartilhadas por ponderável parcela de nossa população? Como explicar às opiniões públicas nacional, internacional e haitiana que o Brasil, respeitado, amado e venerado pelo povo mártir da antiga pérola das Antilhas, dê-lhes as costas num momento de tal gravidade? O que seria da diplomacia cooperativa e solidária brasileira? Qual seria o futuro do enfoque Sul-Sul, dos projetos do Ibas e da respeitabilidade cada vez maior da palavra brasileira no concerto das nações? A resposta é uma só: após a surpresa, a decepção e, a seguir, o menosprezo com que seria avaliado o conjunto da nossa atuação internacional.
Além dos desastres, o abandono do Haiti traria uma constatação: nossa incapacidade de resolver problemas regionais. Desde 1945, o fenômeno da guerra, sob todas as suas formas, migrou do Norte para o Sul do hemisfério, sem com ela aportar os mecanismos para preveni-la e solucioná-la, que continuam com as potências. Os países do Sul seguem oferecendo o palco e as vítimas dos conflitos atuais.
A crise do Haiti, se resolvida, poderia constituir novo modelo de solução de conflitos em que, pela primeira vez, nós exercemos o papel central.
Há muito, propugno que a crise haitiana, antes de ser política e securitária, é provocada pela desesperança, pela miséria, pelo descalabro administrativo, pela ausência de Estado, pelo vazio jurídico-institucional e pelas condições infra-humanas em que vegeta parte ponderável da população. Três dados ilustram a situação: dos 3.341 detentos da Penitenciária Nacional, em Porto Príncipe, tão-só 112 foram condenados. O restante está em "detenção provisória prolongada", que pode estender-se por vários anos; 80% da população ativa está desempregada; há 250 mil crianças em regime de escravidão (os pouco conhecidos e abandonados "restavecs"). Ante esse doloroso quadro, as características da presença brasileira e da comunidade internacional no Haiti devem ser repensadas. Em paralelo à formação da Polícia Nacional Haitiana e à garantia de um nível mínimo de segurança, é fundamental e urgente empreender ações que reavivem a economia da ilha. Às duas dezenas de projetos brasileiros bem-sucedidos devem se somar outras centenas. Porém, é indispensável que sejam auto-sustentáveis e se beneficiem da cooperação financeira dos países desenvolvidos. A cooperação triangular é a chave do sucesso e da solidariedade.
Há quem diga que o Brasil deve prioritariamente olhar para seus próprios problemas sociais. Quem já foi ao Haiti, porém, do soldado ao ministro, sabe que uma luta contra a pobreza não exclui a outra e que a solidariedade internacional só reforça a interna. A pergunta talvez não seja se o Haiti "é aqui" ou "não é aqui", como no verso de Gil e Caetano, mas, sim, onde se encontra o Brasil em relação ao mundo, que necessita, mais do que nunca, de nossa participação pacífica e criativa.


RICARDO SEITENFUS, 60, doutor em relações internacionais, integrou várias missões ao Haiti. É coordenador do projeto www.brasilhaiti.com e autor do livro "Haiti, a Soberania dos Ditadores", entre outras obras.

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