São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

O carnaval da gripe

RIO DE JANEIRO - Mário Filho, que deu nome ao estádio do Maracanã, irmão mais velho do Nelson Rodrigues, escreveu livros fundamentais sobre o futebol, nem por isso se sentia realizado como escritor.
Com as mesmas obsessões que fizeram o irmão ficar famoso, Mário passou a vida querendo escrever um livro sobre o Carnaval de 1919. Nunca teve tempo para realizar seu sonho. Mas os amigos dele sempre ouviam-no falar desse carnaval histórico. Seus cabelos cor de fogo, seus olhos também de fogo, ficavam incendiados quando lembrava o Carnaval daquele ano.
Justifica-se. O Rio enfrentara a Gripe, assim mesmo, na maiúscula. Uns a chamavam de Espanhola, matou até o presidente da República. Em 1918, a Morte vagava pelas ruas e pelas casas, onde os mortos se amontoavam e nem havia uma infra-estrutura mortuária para dar conta dos enterros.
O sujeito começava a atravessar a rua na vertical, em gozo de saúde exemplar, chegava na outra calçada na horizontal, fulminado pela Gripe.
Bem, a Peste foi embora e o Carnaval de 1919 seria a vingança da Vida contra a Morte, da Saúde contra a Gripe. A esbórnia foi total. Na delegacia do Catete, que cobria a rua Santo Amaro, onde funcionava o High Life, registraram-se 2.000 casos de defloramento, recorde que o Mário, arregalando os olhos, dizia ser mundial.
Eu não era nascido na época, mas conheci ao longo da vida muitos filhos da Gripe, o produto final desses 2.000 defloramentos só na jurisdição da delegacia do Catete.
Hoje não temos nem Gripe (com maiúscula) nem defloramentos, palavra e função que saíram de moda. Mas herdei do Mário essa obsessão pelo Carnaval de 1919, a que não assisti, como não assisti à batalha de Salamina, à morte de César e à invasão otomana na península Ibérica.
Não pude aproveitá-lo. Mesmo assim tenho saudade dele.


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