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CARLOS HEITOR CONY
O carnaval da gripe
RIO DE JANEIRO - Mário Filho, que deu nome ao estádio do Maracanã,
irmão mais velho do Nelson Rodrigues, escreveu livros fundamentais
sobre o futebol, nem por isso se sentia
realizado como escritor.
Com as mesmas obsessões que fizeram o irmão ficar famoso, Mário passou a vida querendo escrever um livro sobre o Carnaval de 1919. Nunca
teve tempo para realizar seu sonho.
Mas os amigos dele sempre ouviam-no falar desse carnaval histórico.
Seus cabelos cor de fogo, seus olhos
também de fogo, ficavam incendiados quando lembrava o Carnaval
daquele ano.
Justifica-se. O Rio enfrentara a Gripe, assim mesmo, na maiúscula. Uns
a chamavam de Espanhola, matou
até o presidente da República. Em
1918, a Morte vagava pelas ruas e pelas casas, onde os mortos se amontoavam e nem havia uma infra-estrutura mortuária para dar conta
dos enterros.
O sujeito começava a atravessar a
rua na vertical, em gozo de saúde
exemplar, chegava na outra calçada
na horizontal, fulminado pela Gripe.
Bem, a Peste foi embora e o Carnaval de 1919 seria a vingança da Vida
contra a Morte, da Saúde contra a
Gripe. A esbórnia foi total. Na delegacia do Catete, que cobria a rua Santo
Amaro, onde funcionava o High Life,
registraram-se 2.000 casos de defloramento, recorde que o Mário, arregalando os olhos, dizia ser mundial.
Eu não era nascido na época, mas
conheci ao longo da vida muitos filhos da Gripe, o produto final desses
2.000 defloramentos só na jurisdição
da delegacia do Catete.
Hoje não temos nem Gripe (com
maiúscula) nem defloramentos, palavra e função que saíram de moda.
Mas herdei do Mário essa obsessão
pelo Carnaval de 1919, a que não assisti, como não assisti à batalha de
Salamina, à morte de César e à invasão otomana na península Ibérica.
Não pude aproveitá-lo. Mesmo assim tenho saudade dele.
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