São Paulo, sexta-feira, 25 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil na França

BETTY MILAN

Desde 1986 a França elege anualmente um país cuja produção cultural ela mostra através de diferentes manifestações ao longo do ano. Trata-se de uma maneira de aprofundar as relações diplomáticas e econômicas com outras nações, debruçando-se sobre suas culturas.
O primeiro país escolhido foi a Índia, e quem estava na França teve o privilégio de assistir à adaptação teatral do "Mahabarata", a epopéia que narra poeticamente a guerra entre clãs indo-europeus inimigos.
O último país escolhido foi a China, que em 2004 entrou em cena com um desfile de moda. Descortinando as tradições das diferentes Províncias e revelando combinações inusitadas de materiais e cores, os chineses arrebataram o público de saída. Logo depois da abertura, e antes das manifestações picturais e literárias, inaugurou-se no Musée Guimet uma exposição sobre Confúcio que, por si só, teria sido suficiente para mostrar a grandeza do país do meio, por ter contraposto o culto chinês da longevidade ao culto ocidental da juventude.
Em 2005 o país será o Brasil, que chama de "Brasil-Brasis" a sua temporada e quer se mostrar através da sua modernidade e da diversidade. Segundo o comissário francês Jean Gauthier, o cinema e a música -já muito difundidos na França- terão lugar de honra. A fim de valorizar o samba, serão construídos lugares especiais para a batucada. De acordo com informações da embaixada brasileira, 450 projetos -auto-executados- concorrem para entrar no programa, que será oficialmente anunciado no fim do primeiro semestre, quando os projetos estiverem "abalizados".


No coração d" "Os Sertões" está o mestiço, que é a expressão mesma da nossa diversidade


Sabe-se que haverá uma exposição sobre a cultura dos índios, organizada pela BrasilConnects -Universos Estéticos das Comunidades Indígenas-, e uma exposição sobre o sincretismo brasileiro.
Considerando a proposta dos comissários da exposição e tendo como referência as realizações da Índia e da China, seria pena não fazer um desfile para mostrar a modernidade e a diversidade da nossa cultura através das fantasias da maior ópera de rua existente no planeta. Contrariamente ao que se supõe, o Carnaval é uma manifestação mal conhecida na França, onde ele é sinônimo de oba-oba. Tanto as roupas dos destaques do desfile da Marques de Sapucaí quanto as dos foliões de outros Carnavais tradicionais são exemplos de uma criatividade sem limite e demonstram claramente a relação antropofágica do Brasil com as outras culturas -relação que o cartesianismo francês não concebe, mas que define a nossa forma de ser e nos diferencia.
Seria pena perder a ocasião de mostrar que existe no Sul um país que inventou a lógica paraconsistente porque a sua cultura popular não obedece ao princípio da não-contradição. Um país quase-continente que tem uma contracultura de massas.
Por outro lado, por que não apresentar o nosso "Mahabarata", o drama épico de Canudos, adaptado por um teatro brasileiro já considerado um dos maiores do mundo e atualmente em turnê pela Europa, o Oficina?
No coração d" "Os Sertões" está o mestiço, que é a expressão mesma da nossa diversidade, e não há teatro mais moderno do que o criado por José Celso Martinez Corrêa, que não trabalha só com atores formados pelas escolas de arte dramática, mas também com atores escolados pelo desejo de entrar em cena, alguns deles nascidos nos cortiços e nas ruas do Bexiga.
O ano do Brasil na França tanto deveria servir para difundir a sabedoria inerente à nossa cultura popular, que permite resistir à pobreza através da criatividade, quanto para difundir o teatro e a literatura que estão para ser descobertos -por razões de mercado e ainda por implicar a difícil passagem de uma para outra língua. Do português, que tende a estilizar a oralidade e privilegia o ritmo, pois é a musica que nos transporta, para o francês, cujo registro literário não coincide com o da língua falada.
Para que a literatura e o teatro possam entrar verdadeiramente na França, é preciso apoiar as diferentes iniciativas nesse sentido. Além de formar no Brasil mais tradutores literários, porque é sobretudo deles que a passagem depende, dos artistas capazes de ir e vir de uma a outra língua até encontrarem o texto no qual os leitores se reconhecerão, apesar do mundo longínquo do autor.
O ano de 2005 pode ser decisivo para a presença do Brasil na Europa. Por isso mesmo a escolha dos projetos não deveria ser feita nos bastidores. Deveria, antes, resultar de um debate público. Porque a política dos bastidores, como sempre, tenderá a favorecer interesses pessoais.
A França é uma porta de entrada estrategicamente favorável, porque ela é cartesiana, mas também diz, com Rabelais: "Rio portanto sou". Sem ser fácil, é possível arrebatá-la, ensinando por que ela ama o Brasil, cuja cultura é tão diferente.

Betty Milan, escritora e psicanalista, é autora de "O Clarão" e "A Paixão de Lia", entre outros livros.


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