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São Paulo, segunda-feira, 25 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A explosiva força da verdade

JORGE BOAVENTURA

Em nosso livro mais recente, afirmamos que, no mundo absurdo, contraditório e brutal dos nossos dias, vivemos todos nós, homens e mulheres comuns, como os galés das antigas embarcações romanas, que, agrilhoados aos bancos que ocupavam para acionar os remos do barco, sem terem a visão do exterior, faziam-no ao ritmo marcado por um bumbo que lhes ficava às costas, tocado por alguém que, como eles, ignorava o rumo e o destino da nau em que estavam. Estes só eram conhecidos por alguém que, por detrás de quem tocava o bumbo, empunhava a cana do leme, impondo a rota a seguir.
Pois o verdadeiro timoneiro do mundo absurdo e brutal em que vivemos, segundo o temos repetido tantas vezes, é o que começa a ser apontado e tido como de fato existente, o "poder mundial", exercitado pelo que temos designado como "nação pluriestatal", de vez que, difusa pelo seio de praticamente todas as nações, consegue influenciar, em diferentes níveis, o poder de que elas dispõem.
Em alguns casos, o nível atinge o domínio total do referido poder, de que são, hoje, exemplos marcantes os EUA e o Reino Unido, principalmente o primeiro. Compõem essa "nação pluriestatal" todos os adoradores do "deus Mercado", a cujo serviço deve estar, indispensavelmente, a sacerdotisa "democracia", que pouco ou nada tem a ver com o verdadeiro ideal democrático, universal e eterno, não representando mais do que uma contrafação prostituída do mesmo.
Por tal razão é que temos, reiteradamente, nos referido ao art. 6º da "Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão", promulgada em consequência da Revolução Francesa. Os termos desse artigo e de outros incisos da declaração passaram a constituir a espinha dorsal da tal sacerdotisa do "deus Mercado", a "democracia", que já agora começa a ser objeto de imposição pela força, por parte do governo mundial, de presença cuja realidade torna-se cada vez mais clara. Para os leitores que não tenham presente o conteúdo do art. 6º e dos incisos da declaração, reproduzi-los-emos mais uma vez: "A lei é a expressão da vontade geral, manifestada diretamente ou por intermédio de representantes".
E tudo isso passou a parecer justo e nobre, por influência do "tocador do bumbo" -na prática, todos os "centros de irradiação de prestígio cultural", como a mídia impressa e a eletrônica, as colunas de crítica cultural, as cátedras acadêmicas, tudo basicamente influenciável, quando não efetivamente dependente do "timoneiro", o poder mundial, constituído pelos controladores do "deus Mercado" e impulsionadores de um consumismo devorador, frequentemente inútil e de efeitos desumanos.


O que se fez foi desvincular o processo civilizatório a que pertencemos de suas bases culturais


Com toda a razão, perguntará o leitor a esta altura: Por que o que parece tão justo e tão nobre está sendo condenado pelo escriba atrevido? É porque, com aparência tão bela, na verdade o que se fez -e não por acaso- foi desvincular o processo civilizatório a que pertencemos de suas bases culturais de origem judaico-cristã, consubstanciadas nas Sagradas Escrituras, as quais, ao serem admitidas como de revelação divina, contêm valores permanentes e eternos que, sem substituírem as leis do direito positivo, podem emoldurá-lo, buscando a compatibilização entre a legalidade e a justiça.
Claro que a origem divina das escrituras não é algo que todos aceitam. O que é impossível deixar de aceitar, por ser factual, é que elas representam os alicerces da cultura da qual resultou a civilização a que pertencemos -agora, pensamos, já em franca agonia, em consequência dos erros que pretendem alicerçá-la: as maiorias não são fontes de verdade; elas podem errar e acertar, como as singularidades. E, como a sua composição e decisões podem ser, e são, manipuláveis pelos controladores do mercado, elas tenderão sempre a servi-los, mais do que ao homem comum.
Por isso cresce o número de miseráveis no mundo e multiplicam-se as mais gritantes contradições e injustiças. Agora mesmo o mundo assiste, perplexo, ao desrespeito à maioria da ONU e dos povos do mundo inteiro -dos povos, não dos governos- e a um povo ser massacrado selvagemente. E, em Guantánamo, base dos EUA em Cuba, estarem como que sepultados vivos cerca de 700 afegãos, sem direito a visitas, sem direito a qualquer comunicação com quem quer que seja, sem direito a defesa, sendo "interrogados", só Deus sabe como, por tribunais militares autorizados a aplicar-lhes até a pena de morte.
Nem Hitler, nem Stálin jamais se abalançariam a tanto. De quem o leitor tem ouvido falar mais, disto ou da truculência do tiranete Fidel Castro? Para não ir tão longe: até agora é impossível negar que não tivemos aqui uma mudança de governo, mas apenas de governantes; é que continua no poder o "poder mundial". Se o atual presidente cogita mudar a "correlação de forças" e libertar-nos, é uma hipótese, por muitos motivos, pouquíssimo provável, inclusive à luz de circunstâncias biográficas.
Ficaremos por aqui, quando teríamos tanto a dizer ainda. Voltaremos, porém, ao assunto, nesta brava Folha, se Deus quiser.


Jorge Boaventura, 80, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da Escola Superior de Guerra.

www.jorgeboaventura.jor.br



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