São Paulo, terça-feira, 25 de setembro de 2007

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A máquina de chuva da Amazônia

THOMAS E. LOVEJOY e GOMERCINDO RODRIGUES


A única opção sensata é passar de uma política de redução do desmatamento para uma de suspensão completa


PODE PARECER que isótopos de oxigênio e a luta dos seringueiros no Acre tenham pouco em comum. Mas ambos fazem parte do futuro da Amazônia e de uma parte significativa da agroindústria e da geração de energia hidrelétrica no Brasil. Juntas, exigem um avanço importante na política para a Amazônia.
À época que Chico Mendes lutava para assegurar o futuro dos seringueiros e da floresta, um dos mais respeitados cientistas brasileiros, Eneas Salati, analisava proporções de isótopos de oxigênio na precipitação pluviométrica amazônica do Atlântico ao Peru. Sua conclusão foi irrefutável: a Amazônia produz a parte maior de sua própria chuva. A implicação óbvia foi que o excesso de desmatamento poderia degradar o ciclo hidrológico.
Hoje, imagens obtidas por sensoriamento remoto mostram que o ciclo hidrológico não apenas é essencial para a manutenção da grande floresta mas também garante uma parcela significativa da chuva que cai ao sul da Amazônia, em Mato Grosso, em São Paulo e até mesmo no norte da Argentina. Quando a umidade do ciclo, que se desloca em direção ocidental, atinge o paredão dos Andes, uma parte importante dela é desviada para o sul.
Boa parte da cana-de-açúcar, soja e outras safras agroindustriais nessas regiões depende da máquina de chuva da Amazônia. O mesmo acontece com parte importante da geração de energia hidrelétrica no Brasil. A economia brasileira não pode se dar ao luxo de perder a contribuição importante da máquina de chuva amazônica.
A grande pergunta científica e política é: quanto desflorestamento prejudicará a máquina de chuva? Não há uma resposta simples a essa pergunta complexa. Novas pesquisas do Inpe sugerem que o ponto decisivo será o de um desmatamento de mais ou menos 40%. Com o índice atual de desflorestamento em cerca de 20%, isso pode parecer estar ainda distante.
Não obstante, o bom senso indica que o momento de agir é agora. A máquina de chuva é sujeita a outros fatores que independem do desflorestamento: o tipo de seca provocada pelo El Niño em 1997 e aquela causada por mudanças na circulação do Atlântico em 2005. Em conseqüência disso, o ponto decisivo é muito mais próximo de 20% que de 40%. Não faz sentido descobrir esse ponto desencadeando a degradação da máquina de chuva.
O Brasil merece ser parabenizado pela recente redução no índice de desmatamento (50% em relação a dois anos antes), mas isso apenas adia o momento em que a máquina de chuva será enfraquecida. A única opção sensata é passar de uma política de redução do desmatamento para uma de suspensão completa.
Essa política deve ser suplementada com um trabalho agressivo de reflorestamento. Isso não significa que a floresta seja intocável, mas sim, como nos mostraram Chico Mendes e os seringueiros, que os usos da floresta devem ser compatíveis com a manutenção dela e dos serviços que ela presta, incluindo a máquina de chuva.
Isso pode ser conseguido por meio de recursos adicionais do esforço global para controlar a emissão de gases causadores do efeito estufa.
Aproximadamente um quinto do aumento anual das concentrações atmosféricas de gases causadores do efeito estufa vem do carbono liberado com o desmatamento. Isso faz do Brasil um dos seis maiores emissores mundiais de gases.
Assim, é do interesse do Brasil e do resto do mundo fornecer recursos financeiros para o "desmatamento evitado". Tais esforços não devem reduzir o imperativo da criação de uma nova matriz energética para a sociedade; as mudanças climáticas são tão urgentes que precisamos enfrentar tanto a energia quanto o desmatamento simultaneamente.
O momento para levar essa agenda adiante é agora, na Assembléia Geral da ONU, na reunião de Bali sobre a convenção climática e em outros encontros. Será mais conveniente deixar os detalhes a serem resolvidos a cargo das nações envolvidas. O princípio, porém, é claro: os países que têm grandes florestas devem ser recompensados pelo serviço que prestam ao ecossistema global ao manter o carbono nas florestas e fora da atmosfera. O benefício adicionado ao Brasil é a manutenção da máquina de chuva.
Para que isso funcione, a parte maior da compensação deve ser repassada às regiões recobertas de floresta e, especialmente, às comunidades em cujas mãos está o futuro das florestas. Foi essa a lição fundamental que nos ensinaram Chico Mendes e os seringueiros. Os povos tradicionais, a máquina de chuva da Amazônia e a economia brasileira compartilham um interesse grande no futuro da grande floresta.

THOMAS E. LOVEJOY , 66, doutor em biologia pela Universidade Yale (EUA), é presidente do Centro Heinz de Ciências, Economia e Meio Ambiente. Trabalha com ciência e política na Amazônia há 42 anos.
GOMERCINDO RODRIGUES , advogado, trabalhou como agrônomo com Chico Mendes e os seringueiros do Acre no final dos anos 1980. Ganhou a medalha Chico Mendes de Resistência do Tortura Nunca Mais e é autor do livro "Caminhando na Floresta".

Tradução de Clara Allain.

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