São Paulo, quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Darwin e a filosofia

FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO


Para o cristianismo, a teoria da evolução mostrou os limites de uma interpretação literal da Bíblia e de um "deus das lacunas"

A OBRA de Darwin é um marco do pensamento humano. Mas seu verdadeiro impacto muitas vezes se perde na polêmica estéril entre fundamentalismo e cientificismo.
Para o cristianismo, a teoria da evolução mostrou os limites de uma interpretação literal da Bíblia (abrindo espaço para a hermenêutica contemporânea dos textos bíblicos) e de um "deus das lacunas", invocado para explicar, de forma quase mágica, as lacunas em nosso conhecimento sobre a realidade ("Deus quis...", "Deus fez..."). Por essa razão, evidencia-se a necessidade de a reflexão religiosa dialogar com o conhecimento científico e de a relação entre o cristianismo e a ciência não poder se orientar pelo fundamentalismo.
Mas Deus, por definição, é um ser que está fora do âmbito da investigação científica. Diante da seleção natural, pode-se dizer: "É evidente que somos obra do acaso" ou "Que mecanismo maravilhoso Deus utilizou para nos fazer!". Esperar que a ciência diga qual a frase correta é cientificismo -uso inadequado e desmedido dos resultados do método científico.
A grande questão com que a teoria da seleção natural sempre nos desafiou é saber até que ponto o homem racional, que se declara capaz de se autoconstruir pela cultura e pelo livre-arbítrio, é descrito e definido pelo bicho-homem, que se esconde nos subterrâneos do inconsciente e que pode estar nos guiando em um processo determinado por genes e pressões seletivas.
Trata-se de um problema crucial numa época em que ocorre uma naturalização da moral, a qual procura validar toda tendência instintiva, desde que não afete a individualidade do outro, enquanto a capacidade de autoconstrução da pessoa justifica o descolamento entre condutas e dados biológicos -como na discussão sobre "gênero" e "sexo".
O debate sobre a aplicabilidade ou não dos princípios da seleção natural ao ser humano levou muitas vezes a resultados que hoje parecem risíveis. Por exemplo, explicar as desigualdades sociais dizendo que os "mais aptos" enriquecem e que os "menos aptos" vivem na penúria (antessala da eliminação por seleção natural); ou utilizar a forma do crânio para a identificação de criminosos potenciais.
Teorias como essas subestimavam o peso da história e da cultura e não se sustentaram diante de pesquisas mais precisas. Contudo, ciências como a sociobiologia e a neuropsicologia continuam acumulando evidências da impossibilidade de nos descolarmos de nossa biologia e de nossa evolução. Mesmo o amor mais sublime ou o mais elevado altruísmo, para se fixarem como comportamentos humanos, tiveram de se tornar viáveis para a sobrevivência do homem primitivo e permanecem provocando reações fisiológicas passíveis de serem analisadas em laboratório. Até que ponto essas descobertas podem ser usadas para orientar as condutas humanas?
Nos mamíferos, por exemplo, o processo reprodutivo, com a gestação intrauterina e a necessidade de cuidados relativamente intensos com a prole, levou à seleção de machos que produzem um número elevado de espermatozoides, que frequentemente fecundam muitas fêmeas e que têm o vigor físico necessário à proteção e à alimentação das fêmeas e suas proles. Já as fêmeas produzem poucos óvulos e desenvolvem características que lhes permitem maximizar sua capacidade de gerar e nutrir a prole.
Esses dados são comuns a grande parte dos mamíferos e se aplicam à espécie humana, mas poucas pessoas os utilizariam como justificativa para o machismo e a opressão da mulher. Contudo, até que ponto podem explicar diferenças comportamentais entre os sexos? E, se explicam, que consequências isso traz para a ética e para a moral?
As respostas a essas perguntas não podem ser encontradas nas ciências.
Elas exigem uma reflexão sobre o significado da vida humana, sobre a busca de realização dos desejos mais profundos do nosso coração. Não se trata de pieguice ou de abstrações. Darwin, querendo ou não, mostrou que a religiosidade moderna não podia ser fundamentalista, mas devia se abrir aos desafios da razão. No entanto, também lançou os pilares para perguntas que a ciência não pode responder e que nos obrigam a enfrentar questões seculares da filosofia e da teologia.


FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO , biólogo e sociólogo, coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica), foi por 20 anos professor na PUC-Campinas, onde lecionou ecologia e evolução. Atualmente dedica-se à área de bioética, sendo um dos organizadores do livro "Um Diálogo Latino-Americano: Bioética e Documento de Aparecida".

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