São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
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Papa e luteranos concordam: viva Erasmo!


A alma tranquila de Erasmo estará sorrindo com o enfraquecimento da loucura


ROBERTO ROMANO

O acordo entre católicos e luteranos, encerrando a luta secular para saber qual o melhor caminho da fé, traz à memória a sentença veneranda: "A corrupção dos ótimos os transforma em péssimos". Esse velho aforismo, de profunda sabedoria, atravessa as idades. Infelizmente, em nenhum campo do saber e das ações humanas semelhante advertência foi bem acolhida. O plano em que mais prudente ela se revela é o religioso. Os benefícios das crenças são manchados pelos fanatismos. Basta o célebre motivo de "Ifigênia em Áulis": para assegurar o poder, Agamenon, o "primeiro entre os primeiros", sacrificou sua filha num altar, utilizando para isso a mentira, o dolo, a perfídia contra a sua própria carne. A denúncia dessa atitude, que vampiriza as almas dos que acreditam, foi pronunciada pelo poeta Lucrécio: "Tantum religio potuit suadere malorum" (Tantos crimes pode inspirar a religião!).
Um lamento assim atravessou as idades, chegando à Época das Luzes e aos nossos dias com plena validez.
O que ocorre hoje, em terras dominadas por setores religiosos, confirma ser preciso lutar contra o fanatismo. Pensemos nas mulheres sob o tacão do Taleban, expulsas dos hospitais e jogadas, doentes, em leitos de morte, para que preceitos canônicos sejam seguidos com rigor.
A história das guerras entre protestantes e católicos, em que a bondade celeste foi provada pelas diabólicas armas da tortura, da delação, dos massacres (como na "Noite de São Bartolomeu"), demonstrou que, entre os canhões e os livros, os segundos devem ser os escolhidos para regular os diferentes sentimentos. Os anátemas, as calúnias, o assassinato frio imperaram durante séculos entre seguidores do Nazareno, cujo ensino reside no amor. Essa contradição, o choque das normas e dos atos, desmoralizou a fé cristã no mundo de modo quase irremediável. Bem dizia um historiador, no século 19: "A Igreja só pode ser divina, caso contrário os homens já a teriam destruído".
Entre o líder reformado, Lutero, e a Santa Sé, colocando-se como um mediador, tentando unir as duas intolerâncias letais, ergueu-se um vulto que hoje, no acordo entre católicos e luteranos, é o grande vencedor. Notável Erasmo de Roterdã, cujas falas macias e lúcidas receberam maldições de ambos os lados! Depois de um curto período, em que Lutero o considerou um partidário, os protestantes referiam-se ao humanista inimigo da guerra, particularmente da religiosa, como "ateu", "porco epicurista", "cético". Com gentileza, reservaram-lhe um lugar especial na desgraça eterna. Na outra margem, a católica, seus livros foram postos no índex dos textos proibidos, e seus admiradores, presos e mortos como ateus ou luteranos. Mas ele jamais se cansou de pregar a concórdia.
Na querela do livre arbítrio, Erasmo buscou aproximar os dois lados. Mas ele foi rechaçado por todos. Nosso homem nunca desistiu da inteligência, da liberdade, da comunhão dos cristãos no essencial, a caridade. Recebeu em troca ódios e perseguições. Nas listas de livros confiscados aos editores, apenas dentro da Itália, para não falar da Europa inteira, e só entre 1555 e 1587, dentre 3.425 volumes, 604 eram de Erasmo, ou haviam sido por ele comentados. "Essa proporção de 17,6% faz do humanista de Roterdã o autor mais bem representado no comércio clandestino entre 1555 e 1587" (Menchi, S.S. "Erasmo in Italia", Torino, Bollati Boringhieri Ed., 1987).
No mês que vem, a alma tranquila de Erasmo estará sorrindo com o enfraquecimento da loucura. Os seres racionais ficarão aliviados ao saber que o inferno não é o lugar de quem acredita serem as boas obras, ou a graça divina, a boa doutrina para o resgate dos pecadores. Com santo Agostinho, será possível repetir sem risco de maldições e de morte: "Deus não precisa da nossa mentira". O ano da graça de 1999 merece a comemoração dos que possuem entranhas e juízos saudáveis.


Roberto Romano, 53, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).



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