São Paulo, sábado, 26 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Por uma ética periférica

VOLNEI GARRAFA

O desenvolvimento científico e tecnológico tem sido amargamente excludente. Os benefícios proporcionados pelas descobertas do século passado continuam inacessíveis para mais de dois terços da população mundial. Enquanto cidadãos africanos de Serra Leoa ou Maláui mal vivem além dos 40 anos de idade, japoneses, europeus e norte-americanos alcançam os 80. Da mesma forma, a malária, que vitimou aproximadamente 2 milhões de pessoas em 1999, teve um montante de investimento em pesquisa equivalente a 2% do destinado à Aids, que causou igual número de óbitos naquele ano.
Se antes do processo de globalização econômica os interesses e as diferenças sociais eram grandes, agora são assustadoramente maiores. O que hoje define as prioridades na construção de sistemas de saúde pública não são as demandas ou as necessidades detectadas na realidade social, é o mercado. E, em última análise, é esse mesmo tipo de mercado mecânico e perverso que determina as formas de nascimento, vida e morte; aquelas pessoas que devem viver mais ou menos. A concentração de poder é crescente e as regras do jogo unilaterais e desequilibradas protegem cada dia mais os países ricos.
Se, com alguma dose de tolerância, pode-se até discutir o fato de um país poderoso como os EUA proteger com empenho desmesurado as patentes de seus medicamentos, mesmo quando milhares de vidas estão em jogo, é paradoxal que, escandalizados pela morte de algumas poucas pessoas pelo antraz, tenham imediatamente ameaçado quebrar a patente da ciprofloxacina. São histórias que se repetem nos mais diferentes campos de interesse, com dois pesos e duas medidas, e cujo resultado é sempre prejudicial aos mais frágeis.
Desde que Aristóteles expressou, há 24 séculos, que a vida é o bem maior e que o objetivo principal da mesma é a busca da felicidade, ninguém até hoje conseguiu contestar convenientemente essa afirmação. Diante disso e das contradições anteriormente referidas, não resta dúvida da necessidade de mudanças tanto dos paradigmas econômico-científicos, como, principalmente, dos compromissos e responsabilidades sociais, o que não significa obrigatoriamente a dissolução dos valores já existentes, mas sua transformação.
Essas transformações são de difícil execução. A resultante moral da modernização não tem conseguido articular a agenda atual da autonomia com o ideal aristotélico da felicidade. A aliança entre ciência, técnica e economia em um contexto de liberalismo político e capitalismo trouxe progresso, desenvolvimento, riqueza e liberdade política só para uma parte do mundo, gerando pobreza, subdesenvolvimento e desigualdade para a maioria da população.
Deste diagnóstico sombrio nasce a preocupação ética de que as morais dependentes da racionalidade estratégico-instrumental, do decisionismo centralizado, do irracionalismo subjetivista ou do pragmatismo mostram-se incapazes de enfrentar os desafios e fundamentar as bases de uma macroética da responsabilidade solidária.


O propósito desta crítica é fazer avançar a proposta de discussão de uma bioética dura, uma bioética de intervenção


Tendo como referência a constatação de indesejáveis indicadores de desequilíbrio social, que implicam paradoxos éticos insustentáveis, a busca de respostas práticas e éticas, com base em referenciais teóricos mais apropriados, tornou-se prioritária para os países pobres do hemisfério Sul. A partir da construção de um novo arcabouço crítico e epistemológico, dialeticamente engajado às necessidades das maiorias excluídas do processo desenvolvimentista, os dilemas rotineiramente detectados pelos especialistas periféricos da saúde pública e da bioética deverão ser enfrentados com mais objetividade.
Sanitaristas e bioeticistas do hemisfério Sul não devem mais se curvar ao crescente processo de esvaziamento e despolitização dos conflitos morais, que exclui o espaço para a indignação. A justificativa ética é distorcida, passando a servir como ferramenta metodológica neutral utilizada exclusivamente para a simples leitura e interpretação dos conflitos, sem proposta interventiva. É amenizada e até anulada a gravidade das diferentes situações, principalmente aquelas coletivas, que resultam nas mais profundas distorções sociais.
O propósito desta crítica é fazer avançar, no contexto internacional, a partir da América Latina, a proposta de discussão de uma bioética dura, uma bioética de intervenção, como uma perspectiva periférica às teorias éticas tradicionalmente utilizadas pela bioética de fundamentação nortista. Esta proposta já foi introduzida em congressos de bioética e saúde pública realizados no Brasil (1998), Argentina (1999), Panamá (2000), Bolívia (2000), México (2001) e Colômbia (2002).
A "hard bioethics", partindo do utilitarismo consequencialista, defende como moralmente justificável, entre outros aspectos, no campo público e coletivo, a priorização de políticas e decisões que privilegiem o maior número de pessoas pelo maior espaço de tempo possível, mesmo que em prejuízo de certas situações individuais, com exceções pontuais a serem discutidas. No campo privado e individual, a busca de soluções viáveis e práticas para conflitos identificados com o próprio contexto em que os mesmos acontecem.
Propõe-se uma aliança verdadeiramente democrática e concreta com o lado historicamente mais frágil da sociedade, incluindo a "reanálise" de diferentes dilemas, entre os quais: autonomia versus justiça/equidade, benefícios individuais versus benefícios coletivos, individualismo versus solidariedade...
Vale dizer que o verdadeiro significado de equidade não é o mesmo de igualdade. A igualdade é a consequência desejada da equidade, sendo esta só o ponto de partida para aquela. É por meio da equidade, ou seja, do reconhecimento das diferenças e das necessidades diversas dos sujeitos sociais, que se alcança a igualdade. A igualdade não é mais um ponto de partida ideológico visto de forma exclusivamente horizontalizada e que tendia a anular as diferenças, mas sim o ponto de chegada da justiça social, referencial dos direitos humanos mais elementares, em que o objetivo futuro é o reconhecimento da cidadania.
A equidade é, assim, um dos caminhos da ética prática para a realização dos direitos humanos universais, entre eles o direito a uma vida digna, representado nesta discussão pelo acesso à saúde e demais bens de consumo indispensáveis à sobrevivência.


Volnei Garrafa, 52, professor titular da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, é presidente da Sociedade Brasileira de Bioética e do 6º Congresso Mundial de Bioética (que será realizado em Brasília, de 31/10 a 3/11).


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