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São Paulo, quinta-feira, 27 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A "quebra" das empresas de energia

CARLOS AUGUSTO KIRCHNER

Algumas empresas concessionárias do serviço público de distribuição de energia, privatizadas ao longo dos últimos cinco anos, encontram-se em situação calamitosa. Têm endividamento crescente e, em alguns casos, simplesmente deixaram de honrar compromissos financeiros assumidos. Conforme divulgado pela imprensa, a Eletropaulo deixou de amortizar uma dívida de US$ 1,216 bilhão com o BNDES e diversas distribuidoras têm dado o calote nas geradoras federais, subsidiárias da Eletrobrás, que lhes fornecem energia.
Ao que parece, de nada serviram os reajustes tarifários concedidos, sempre superiores à inflação, o repasse integral de todos os custos não-gerenciáveis pelas empresas e até a recomposição das perdas de receita que teriam ocorrido durante o racionamento.
É preciso lembrar que um serviço público, como é o fornecimento de energia elétrica, constitui obrigação do Estado, ainda que executado por um ente privado. Assim, se a empresa concessionária não cumpre seus deveres ou está econômica e financeiramente desequilibrada, o poder concedente tem obrigação de retomar para si aquilo de que é titular absoluto e pelo qual é o maior responsável. Se, a seguir, delegará ou não a outro controlador privado, é uma questão menor, pois o que importa é garantir as condições técnicas, qualidade e continuidade desse serviço essencial.
É importante que se esclareça que não foi a privatização em si, mas o processo de privatização adotado que levou ao grande endividamento das empresas. Permitiu-se que o "investidor" -que, na prática, não investiu nada, pois recebeu empresas prontas- incorporasse como dívida da empresa o próprio montante gasto em sua compra. Às vésperas do leilão de privatização, eram criadas pelos interessados sociedades de propósitos específicos (SPEs).
Para realizar a compra, a SPE contraía empréstimos na própria matriz e no BNDES e passava a ser a nova controladora da empresa privatizada. Em seguida, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) aprovava a incorporação da SPE pela empresa privatizada. A SPE não tinha capital nenhum, só dívidas. Assim, o que antes era uma estatal equilibrada economicamente, passava a ser uma empresa com uma dívida monstruosa, em grande parte atrelada ao dólar e com taxas de juros exorbitantes para o mercado internacional. Ela tornou-se uma pagadora de dívidas à sua matriz e ao banco nacional, que abdicou de suas funções de desenvolvimento.


O quadro exige uma ampla auditoria nas distribuidoras para verificar a situação financeira de cada uma


A Aneel, cúmplice da crise que assola o setor, tem tomado atitudes tímidas para solucionar o problema. Tentou vender a quebrada Cemar, distribuidora do Estado do Maranhão, abandonada pelo seu controlador privado norte-americano; omitiu-se em relação à falência da Enron, controladora da distribuidora paulista Elektro; e finge não ver a grave situação da Eletropaulo. Por meio da resolução nš 20/99, a agência desobrigou as empresas de solicitar autorização para venda de ativos. Assim, a Eletropaulo está acabando com o seu patrimônio sem que o poder concedente tome qualquer providência.
A Lei de Concessões prevê, no caso de inadimplência do concessionário, a declaração de caducidade. Por essa via, a concessão é extinta e reverte ao poder público sem que este tenha de se responsabilizar por obrigações contraídas pelo controlador privado, inclusive com os empregados. Ele teria direito apenas à indenização dos investimentos não amortizados ou depreciados.
Entretanto a Aneel tem negligenciado esse instrumento -o que pode gerar grandes prejuízos aos cofres públicos. No caso da Eletropaulo, por exemplo, se o BNDES simplesmente assumir o controle da empresa pelas ações entregues como garantia do financiamento, levará no pacote as dívidas e mazelas praticadas pela companhia enquanto estava privatizada.
Ainda que o governo possa assumir alguns dos encargos (financiamento no BNDES, quitações trabalhistas anteriores etc.), descontando da indenização o valor correspondente, não faz sentido que herde dívidas da Eletropaulo com sua matriz ou obrigações de algum tipo de transferência de recursos entre empresas do mesmo grupo.
O quadro exige que se faça uma ampla auditoria nas distribuidoras para verificar a situação financeira de cada uma delas. Aquelas que estiverem infringindo a Lei de Concessões deverão ter declarada a caducidade de seu contrato. Da mesma forma, empresas que desviam dinheiro para outras finalidades não podem continuar operando. O poder concedente deve zelar pelo serviço público. Caso contrário, as tarifas seguirão aumentando e o problema não será a quebra das empresas, mas do país.

Carlos Augusto Ramos Kirchner é diretor do Seesp (Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo) e do Ilumina - Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico.


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