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O pós-moderno
FRANCISCO DE OLIVEIRA
Ele deu um salto à frente, de enormes proporções, e se tornou o mais eminente dos pós-modernos. Lula é, agora, a vanguarda do atraso
LUIZ INÁCIO Lula da Silva, o atual
presidente, nunca disfarçou seu
desprezo pelos intelectuais, sentimento ou perspectiva compartilhada, aliás, por não poucos dos seus camaradas. Houve até um ministro importante do primeiro mandato que,
ao anunciar a criação de um núcleo de
estudos estratégicos no governo, avisou imediatamente que nele não teriam assento intelectuais que discutem eternamente o "sexo dos anjos",
o que deu para desconfiar que ele não
entendia nada de sexo ou de anjos
-ou dos dois. A ironia é que Lula entregou agora o Ipea e o tal núcleo de
estudos exatamente a um intelectual,
tão intelectual que fala português
com sotaque norte-americano.
Intelectual, diga-se logo, não é garantia de coisa alguma, pois o predecessor de Lula era um intelectual consagrado, que aliás se pavoneava com
certa desfaçatez, proporcional ao desprezo de Lula. Que o PT tenha incensado certos intelectuais não faz muita
diferença, pois essa é uma tradição da
esquerda, a instrumentalização dos
intelectuais ou de seus prestígios.
Por isso, não se lamenta muito o
desprezo do presidente. Mas ele agora deu um salto à frente, de enormes
proporções, e se tornou o mais eminente dos pós-modernos. Ainda que
rejeitem a noção de vanguarda, é certo que Luiz Inácio é, agora, a vanguarda do atraso.
Fazendo tabula rasa da história dos
trabalhadores sob o capitalismo, Lula
se entregou a perigosos exercícios intelectuais: designou os usineiros de
açúcar do Brasil como heróis, os mais
importantes do Brasil moderno, vale
dizer, do Brasil lulista. Logo ele, pernambucano, desconhecer a história
dos trabalhadores da cana-de-açúcar.
Jogou na lata de lixo as vidas ceifadas
e de qualquer modo amesquinhadas
por uma das formas de exploração do
trabalho mais brutais. Não, segundo o
pós-modernismo do presidente, eles,
os trabalhadores, não existiram, suas
vidas não contaram, porque os usineiros sempre foram magnânimos e um
viés preconceituoso da esquerda prejudicou o reconhecimento do papel e
do lugar dessa primorosa classe social
na história brasileira.
Francisco Alves é um pesquisador e
professor da Universidade Federal de
São Carlos que, com José Roberto
Novaes, este da federal do Rio de Janeiro, está publicando em livro os resultados de anos de investigação sobre o trabalho dos cortadores de cana
na região eldorada do açúcar em São
Paulo. Em recente seminário na Faculdade de Saúde Pública da USP, foi
difícil conter a indignação de Chico
Alves, pois os jornais noticiavam mais
uma morte por exaustão de um trabalhador da cana. Quase ao mesmo tempo, a Folha atualizava a sinistra estatística: já são 19 trabalhadores que
morrem por exaustão desde 2004.
A professora Maria Aparecida Moraes, que também comparece com excelente artigo na coletânea, esclarecia em entrevista o que provocava as
mortes por exaustão, mas a encerrava
com uma nota final esperançosa que,
para os leitores, era completamente
estapafúrdia diante do que ela mesma comentara.
Aos fatos, finalmente: a produtividade dos trabalhadores tem crescido
de maneira exponencial. No período
de dez anos estudado por Chico Alves, ela havia passado de seis para 12
toneladas diárias. Eles perdem cerca
de dez litros de água por dia, percorrem distâncias -no campo de trabalho, nos metros que lhes são destinados para corte- de dez quilômetros
diários, dão 66 mil foiçadas (com o
podão, um facão especial) por dia para lograr as 12 toneladas diárias, trabalham no mínimo 12 horas por dia,
numa jornada que tem, pelo menos,
seis horas de intensa exposição ao sol.
São encontrados no fim do dia nos
postos de saúde tomando soro na veia
para recuperar um pouco dos sais que
perdem. Morrem por esgotamento:
câimbras que podem provocar paradas cardíacas. Têm hoje vida média
inferior à dos escravos coloniais.
Em reportagem da Folha, um deles
relatou que quase foi picado por uma
cobra, que exige que andem com perneiras de plástico e ferro para evitar
os presentes da deusa do Paraíso e o
repique do podão.
A ironia da história é que a mudança do critério de toneladas para metros foi uma vitória da célebre greve
de Leme em 1986, aquela em que deputados do PT, entre eles José Genoino, foram acusados pelas autoridades, com apoio dos heróis usineiros,
de disparar um tiro que matou uma
trabalhadora rural. Mas essa vitória
de Pirro exige que os trabalhadores
saibam converter metros em toneladas para não serem logrados, e a história diária é a de um roubo descarado. Marx disse certa vez que o capitalismo não é roubo, é exploração.
É necessário ressuscitar a princesa
Isabel e Marx: a primeira para realizar a nova abolição, e o segundo, para
reformular seus conceitos, ainda generosos, de mais-valia e exploração.
Ave, Lula! Os usineiros te saúdam,
e o Brasil, transformado num imenso
canavial, curva-se à tua sapiência!
FRANCISCO DE OLIVEIRA, 73, é professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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