São Paulo, sexta-feira, 27 de agosto de 2004

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ELIANE CANTANHÊDE

O cúmulo da covardia

BRASÍLIA - Eu estava ontem caminhando em Higienópolis, simpático bairro paulistano, quando topei com um trecho da calçada em obras e tive de fazer um desvio pela rua. Olhei, o carro mais próximo estava bem longe, e fui. De repente, dois rapazes à minha frente puseram as mãos na cabeça -típico gesto diante de uma tragédia. Virei para o lado a tempo de ver, quase sentir, um carro branco passando a centímetros de mim.
O motorista gritou da janela: "Quer morrer?". Eu não quero morrer, mas ele quer matar, porque jogou o carro contra mim sem motivo. Não havia carro na outra pista, nem buracos, nada. Foi a violência pela violência.
Num segundo, ficou claro por que atacam mendigos a pauladas ou marretadas na cabeça. É o ódio social aliado à sensação de poder, de força. Uns jogam carros contra pessoas indefesas. Outros miram suas armas justamente contra o lado mais fraco, contra pessoas que foram abandonadas pelo Estado e pelas famílias, que não têm teto, nem saúde, nem auto-estima, nem o que comer. Não faz sentido. Ou faz?
O ato de barbárie extrapolou São Paulo, fez escola em Pernambuco, virou questão nacional e nos faz refletir sobre onde vamos parar. Quando o Estado não faz sua parte, a elite só pensa no próprio umbigo e a classe média se digladia por migalhas públicas, o fosso social se aprofunda. E chega-se a isso: joga-se o carro contra o pedestre, mata-se por matar o mais miserável dos miseráveis.
Os seis mortos e as demais vítimas da barbárie no coração da principal cidade do mais importante Estado brasileiro são um alerta. Se foram "neonazistas", "skinheads" dessa ou daquela família, ou uns loucos do mal, é quase detalhe. O fundamental é que o espírito nazista baixa quando as instituições falham e a desigualdade social é tanta e tal. Esse, aliás, é o verdadeiro crime bárbaro.


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