São Paulo, sexta-feira, 27 de agosto de 2004

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CLAUDIA ANTUNES

À espera do milagre

RIO DE JANEIRO - A expectativa que se criou em torno da atuação de Daiane dos Santos nos Jogos Olímpicos tem a ver com a "torcida patriótica" desencadeada nos grandes eventos esportivos, mas é mais do que isso. A medalha de ouro para Daiane tornou-se tão almejada pelos brasileiros porque a ginasta foi transformada em símbolo de uma identidade particular que o país, meio por vergonha da verdade e meio por ufanismo desinformado, gostaria de consagrar como sua -a de um povo integrado racial e socialmente, alegre mesmo na adversidade e que tudo alcança com trabalho árduo e honesto. Uma vitória da menina porto-alegrense, negra e de origem pobre, num esporte dominado por países ricos ou ex-socialistas, que exige olheiros no jardim-de-infância e preparação prolongada, representaria a fixação dessa identidade como que por milagre, a custo zero -sem convulsões políticas, sem a discussão tão incômoda sobre cotas raciais ou socioeconômicas, sem que alguém precisasse perder privilégios ou mudar rotinas. Mas o fato é que a realidade está muito longe do imaginário e, mesmo consciente das injustiças acumuladas que impedem que uma e outro se fundam, a maioria dos brasileiros ainda prefere não encará-las de frente. Se o milagre não aconteceu desta vez, larga-se o santo e parte-se à procura de outro padroeiro. É sintomático que, apesar da atitude pragmática de Daiane diante da derrota, dois dias depois já circulasse pela internet uma fotomontagem abjeta, que mostra a ginasta, ao lado das três campeãs olímpicas da modalidade, segurando nas mãos um abacaxi -fique com o problema que você não criou, é a mensagem, porque preferimos esquecer nossas responsabilidades passadas e futuras.
 
Deve ser conseqüência da origem paulista da alma tucana, mas a benevolência com que o governador Geraldo Alckmin é tratado nos episódios que põem em dúvida a gestão da segurança pública seria impensável no Rio, onde a regra, oposta e tão torta quanto, é politizar o problema.


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