São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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ÉTICA E REFORMA DA NATUREZA

Encontra-se em curso um debate tão aceso quanto fundamental para o futuro da agricultura e da medicina, do qual, no entanto, ainda só se ouvem ecos esparsos no Brasil. Em pauta está a biotecnologia, a técnica de manipulação genética para modificar alimentos e remédios na tentativa de aperfeiçoá-los.
Isto é, debate-se a intervenção humana nos mecanismos biológicos responsáveis pela forma e pelas funções dos seres vivos, que hoje atinge também até o próprio corpo humano, como o demonstram técnicas como a clonagem. Por ora, a engenharia da vida está na base da reorganização da indústria química e farmacêutica em "life sciences companies" (empresas das ciências da vida).
Esses novos gigantes empresariais costumam apresentar-se como portadores de soluções para os problemas da humanidade. Da cura de doenças renitentes à capacidade de alimentar uma população mundial que pode ultrapassar 10 bilhões de pessoas, a esperança se concentraria doravante no DNA, matéria-prima dos genes. Isto é, a solução estaria na capacidade humana de manipular aquilo que faz um organismo funcionar desta ou daquela maneira.
Dominar a genética, para pô-la a serviço do homem -este é o programa alardeado. Desta perspectiva, contrapor-se à biotecnologia equivaleria a obstar o progresso na luta contra a fome e a doença.
No campo oposto, porém, os argumentos também buscam o fundamento convincente da ética ou, pelo menos, da prudência em relação a essa espécie de "reforma da natureza" que teria como resultado plantas e animais transgênicos -modificados geneticamente.
Ambientalistas e alguns pesquisadores acreditam que os riscos da manipulação genética para a saúde e o ambiente não se encontram definitivamente afastados. Afirmam estes críticos que as culturas transgênicas disponíveis, tais como a da soja e a do milho, beneficiam produtores de sementes e agrotóxicos, não o público em geral. Temem que essas variedades dominem a agricultura, aumentando a dependência em relação a uns poucos cultivares.
Ainda segundo estas críticas, prosseguir com o rolo compressor dos alimentos transgênicos representaria o atropelo de princípios democráticos elementares, como a liberdade de escolha, por exemplo.
O confronto de tais posições evidenciou-se mais uma vez na conferência "Biotecnologia em Público", realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em dezembro. Verificaram-se, no entanto, alguns avanços. O mais importante parece ser a constatação de que o interesse do público terá de ser definido de forma pragmática e não principista.
O Brasil encontra-se em posição privilegiada para encetar esse debate, pois apenas iniciou a regulamentação de organismos geneticamente modificados. Para isso, no entanto, é fundamental que a discussão transcenda o foro restrito da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança.



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