São Paulo, quarta-feira, 28 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Civilizações em confronto

CARLOS DE MEIRA MATTOS

O confronto de civilizações é o tema que vem preocupando os especialistas de política internacional em todo o Ocidente. As marcas mais vivas desse conflito, antes mais visíveis apenas na crise palestina, nos últimos anos apareceram nítidas nas guerras da Tchetchênia, da Bósnia, da Croácia, da Iugoslávia, do Afeganistão e do Iraque.
Em todos esses confrontos modernos vêm se revelando, ao lado de seus aspectos políticos e econômicos, uma rejeição pelas soluções, padrões e comportamentos inerentes à cultura ocidental-cristã. Essa rejeição parte, essencialmente, da população islâmica que habita esses países convulsionados.
Na região envolvida pelos principais conflitos da atualidade -Oriente Médio, península Arábica, Ásia Central e Bálcãs-, agravam-se, dia a dia, os sinais de intolerância cultural, incentivados por líderes fundamentalistas islâmicos em constantes apelos para que toda a comunidade religiosa devota de seu Deus, Alá, e de seu profeta Maomé se levante unida numa guerra santa (jihad) contra os infiéis, os cristãos-ocidentais, que consideram invasores de suas terras.
Escritores internacionalistas e sociólogos norte-americanos, devotados aos estudos prospectivos sobre a marcha da civilização, vêm publicando obras analisando profundamente as origens e as possíveis consequências dessa inquietante discórdia cultural.


O receio de Fukuyama é que efeitos sociais perversos possam tornar insustentável a manutenção da ordem


Entre os livros de maior projeção sobre essa questão, verdadeiros "best-sellers" já traduzidos em vários idiomas, destacam-se dois: "Choque de Civilizações" (Clash of Civilization, 1996), de autoria do professor Samuel Huntington, e "Le Grand Bouleversement" (tradução francesa, 2002), do professor Francis Fukuyama, o mesmo autor do polêmico "O Fim da História".
O pensamento de Huntington pode ser resumido no seguinte conceito: a tendência no século 21 é para o agravamento do conflito entre as civilizações ocidental-cristã e árabe-islamita, ambas monoteístas e missionárias. Esse confronto, prediz, deverá gerar inúmeros e mortíferos choques, pela incapacidade de convivência, em crescente intensidade, entre os povos portadores de duas culturas tão diversas. A única esperança de evitar a gravidade e a violência do confronto reside na possibilidade de os líderes políticos mais representativos das duas civilizações mostrarem-se capazes de conter os impulsos extremistas e fanáticos de suas minorias fundamentalistas.
Fukuyama, por sua vez, analisa, no quadro do confronto entre as civilizações, a influência modernizadora da "era da informática". Conclui que a civilização ocidental-cristã, portadora da cultura liberal-democrática, é a única que permite e estimula a liberdade de pesquisa científica e tecnológica e, portanto, é a única capaz de promover os avanços modernos que projetarão o poder político e econômico da sociedade mundial do futuro. Entretanto, os temores de Fukuyama, manifestados no seu último livro, não residem na possibilidade de perda pelo Ocidente-cristão, neste século, de sua incontestável supremacia modernizadora técnico-científica, fonte de poder inalcançável por qualquer outra civilização. O receio de Fukuyama é que efeitos sociais perversos, subprodutos da "era da informação", como o enfraquecimento dos valores essenciais da dignidade humana (a degradação da moral e dos costumes, a desagregação da família, o enfraquecimento das hierarquias familiar, empresarial e institucional), possam tornar insustentável a manutenção da ordem social.
Em resumo, os temores de Fukuyama quanto à supremacia da civilização ocidental-cristã no século 21 não residem na ameaça à sua incontestável superioridade tecnológica modernizadora, fonte de poder inalcançável por qualquer outra das atuais civilizações, mas na crise social, de desrespeito à autoridade, de banalização da ilegalidade e de afrouxamento dos costumes, efeito perverso que vem se manifestando na "sociedade da informação".

Carlos de Meira Mattos, 90, doutor em ciência política, general reformado do Exército, é veterano da Segunda Guerra Mundial e conselheiro da Escola Superior de Guerra.


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