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A ciência e o Supremo
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
O voto de um dos mais respeitados juristas do país ameaça o sucesso
de um modelo institucional extremamente promissor
EM 1998, buscando uma fórmula
institucional que limitasse os
malefícios decorrentes do corporativismo e da vitaliciedade inabaláveis, freqüentemente observadas
em instituições de pesquisa científica,
inclusive as de universidades, foi formalizado um modelo institucional
denominado organização social (OS).
Devido a uma série de circunstâncias fortuitas, o recém-criado Laboratório Nacional de Luz Síncrotron
(LNLS), que havia reunido um conjunto de práticas e normas cujos resultados haviam sido considerados
positivos, veio a servir como modelo
para essa reformulação institucional.
Esse novo modelo é essencialmente composto de dois instrumentos. De
um lado, uma pessoa jurídica, a OS,
que tem como responsabilidades a organização e a realização de atividades
específicas de interesse social, e, de
outro, um dito "contrato de gestão",
pelo qual governo e OS pactuam o
empreendimento a ser executado por
esta com recursos públicos.
Assim, objetivos e metas são estabelecidos pelo governo, que fiscaliza
periodicamente a sua consecução. Se
tais metas não são alcançadas, o contrato é rompido, e a OS, extinta.
Não é surpreendente que partidos
de esquerda, PT e PDT, tenham se insurgido contra essa inovação, principalmente o primeiro, cuja origem sindicalista o leva instintivamente a defender certos padrões tradicionais,
como estabilidade no emprego e isonomia de benefícios. É, portanto,
compreensível que esses dois partidos tenham investido judicialmente
contra uma instituição que não dá segurança plena de emprego, embora
opere recursos públicos.
Mas eis que um voto de um dos
mais respeitados juristas do país, o
emérito juiz do Supremo Tribunal
Federal, Eros Grau, se apresenta como uma ameaça ao sucesso não apenas de um modelo institucional extremamente promissor -pelo menos
para o setor de ciência- como também à sobrevivência de algumas das
instituições mais profícuas [ ] da ciência
brasileira, como o LNLS e o Instituto
Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa).
O mais lamentável é que praticamente toda sua erudita argumentação se baseia em uma falsa premissa,
em uma compreensão incorreta do
que sejam tanto a organização social
quanto o contrato de gestão.
Partindo de considerações absolutamente corretas de preceitos constitucionais de isonomia e de uso de recursos públicos, o ilustre jurista condena o módulo organização social-contrato de gestão como meio de concessão de privilégios.
Ora, o conceito de privilégio pressupõe ganho. Contrariamente ao que
acontece com fundações, sejam elas
de direito privado ou público, com
ONGs e toda essa parafernália de entidades não-governamentais, a organização social não possui, de fato, patrimônio, pois tudo que administra
retorna ao Estado quando se extingue
o pacto. Ou seja, quando é interrompido o contrato de gestão, o que pode
ocorrer "ad nutum", ou seja, por decisão unilateral do governo.
As OSs não detêm patrimônio.
Além do mais, não há taxa de administração. Como então exigir licitação
para contrato de gestão, como pretende o zeloso jurista?
A relação governo-OS, por meio de
contrato de gestão, se equipara, portanto, às concessões de auxílio a pesquisa realizadas entre agências governamentais, tais como CNPq, Fapesp,
Finep etc., e pesquisadores. A OS não
recebe recursos públicos, apenas os
administra.
Contrariamente a essas "sinecuras" em que se constituem esses polpudos conselhos de estatais, de agências e de fundações, membros de conselhos de administração das OSs não
recebem "jetons". Em realidade, os
repasses de recursos são tão-somente
administrados pela OS. Funcionários
são remunerados pelos serviços executados -sem, no entanto, constituir
passivo para o Estado.
Outro exemplo de interpretação
equivocada do ilustre relator é uma
previsão existente nessa legislação
para "cessão" de funcionários para as
OSs. Esse dispositivo foi incluído porque se esperava que alguns institutos
da administração direta se "convertessem em OSs".
Todavia, o que mais surpreende já
no início da diatribe de tão ilustre
mestre é sua acusação de "neoliberalismo" às motivações para a criação
da nova instituição, certamente descabida em uma argumentação sobre
constitucionalidade, pois desnuda,
senão inoportuno preconceito, pelo
menos ausência da necessária isenção para uma análise justa.
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 75, físico, professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha, é
presidente do Conselho de Administração da ABTLuS (Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron).
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