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São Paulo, sexta-feira, 28 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Que autonomia é essa, companheiro?

ANTHONY GAROTINHO

A questão inicial a respeito da idéia de autonomia do Banco Central é a seguinte: O que desejam os defensores dessa autonomia? Em primeiro lugar, desejam liberdade de ação das autoridades do BC em relação à sociedade organizada e ao governo federal.
Na verdade, em toda a sua história, o Banco Central brasileiro tem agido de forma a favorecer o capital financeiro. Como não existem normas definidoras de uma estrutura organizacional e administrativa que contemplem a participação da sociedade organizada nas decisões, tudo é decidido de forma não-estruturada, refletindo os interesses do grupo político eventualmente no poder e do único setor que efetivamente participa dessas decisões, o setor financeiro.
A regulamentação parcial do artigo 192 da Constituição Federal, proposta pelo governo Lula, é uma pressão explícita para manter o poder do sistema financeiro sob a autoridade monetária do país. Sem uma reestruturação, não podemos fazer modificações no BC. Ele precisa, antes, ser democratizado.
Peguemos o exemplo norte-americano do Federal Reserve (FED), tão citado pelos economistas como modelo de banco central independente. Ele é composto de quatro instituições, integradas por representantes de vários setores da sociedade, representantes de bancos regionais e conselheiros indicados pelo presidente da República. A primeira instituição é o Conselho Superior, formado por sete membros com mandatos fixos, apontados pelo presidente da República e aprovados pelo Congresso. Um de seus membros é indicado presidente, com mandato de quatro anos.
O FED é composto ainda por 12 bancos centrais regionais, tendo cada um nove diretores. Desses 108 diretores, um terço é representativo das classes produtoras de cada região; um terço, do sistema financeiro; e o outro terço é dividido entre representantes do notório saber e de sindicatos de trabalhadores.
A terceira instituição que compõe o FED é o Comitê Federal de Conselheiros, em número de 12, todos indicados pelo presidente da República.
A quarta instituição é o Comitê Federal do Mercado Aberto. Trata-se de um órgão colegiado, composto pelos sete membros do "board" e pelos 12 presidentes dos bancos centrais regionais. O presidente do Comitê Federal do Mercado Aberto é o presidente do FED, que tem como vice o presidente do Banco Central da Reserva Federal de Nova York. Esse colegiado se reúne a cada seis semanas para examinar os 12 relatórios emitidos por cada banco central regional, surgindo daí um conjunto de proposições a serem examinadas pelo plenário. É dentro desse plenário que as decisões mais importantes para a economia americana são tomadas, inclusive a fixação dos juros de curto prazo.


Colocar em pauta a autonomia do Banco Central brasileiro sem permitir a sua reestruturação não é sério


A decisão sobre a taxa básica de juros nos Estados Unidos não é, portanto, um processo desorganizado, individual ou dominado por um setor, mas reflete a vontade da sociedade americana. São 93 as instituições que podem se manifestar. Quando Alan Greenspan, o presidente do FED, faz o seu pronunciamento, toda a cadeia produtiva -o mercado financeiro, o setor agrícola, o setor pensante- já opinou.
Colocar em pauta a autonomia do Banco Central brasileiro sem permitir a sua reestruturação não é sério. No Brasil, é o BC que estabelece as regras de operação do sistema financeiro, gerencia as dívidas interna e externa, cuida das reservas internacionais, fixa as taxas de juros, conduz a política de câmbio e acompanha a remessa de lucros para o exterior, entre outras atribuições.
Conceder autonomia ao banco sem mudar as atuais estruturas será, definitivamente, entregar a chave do cofre aos banqueiros. O governo Lula deveria proceder, por meio de um grupo de trabalho, à revisão da missão, estrutura, funcionamento e independência do BC. Os debates deveriam incluir a sociedade organizada, retirando dos grupos fechados a exclusividade na formulação das orientações da política monetária.
O povo brasileiro reprovou, nas eleições, o modelo de política econômica implantado no Brasil por Fernando Henrique e Malan. Aceitar a autonomia legal do Banco Central nas condições atuais é criar para os bancos uma espécie de área reservada em que o governo fica impedido de implementar seus projetos. O presidente da República ficará legalmente privado do poder de alterar a política cambial e monetária.
O PT tem todas as condições políticas, conferidas pelo povo, para construir um novo paradigma de BC, para que ele seja o Banco Central do Brasil, e não o Banco Central dos banqueiros.

Anthony Garotinho, 42, foi governador do Estado do Rio de Janeiro (1999-2002), prefeito de Campos (1989-92 e 1997-98) e candidato à Presidência da República, em 2002.


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