São Paulo, segunda-feira, 28 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Por que celebrar o orgulho gay?

JOÃO SILVÉRIO TREVISAN

Hoje comemora-se o Dia Internacional do Orgulho Gay, a partir das lutas em torno do bar Stonewall Inn, em Nova York, no ano de 1969, quando uma multidão se rebelou contra a polícia, que, mais uma vez, tentava prender homossexuais. Em meio aos carros queimados e à batalha campal que durou três dias, nasceu o moderno movimento pelos direitos homossexuais.
Não que fosse um dado inédito. A luta pelos direitos homossexuais já existia desde 1897, na Alemanha. A novidade é que, a partir de agora, o movimento chegava às massas, e não apenas a grupos de intelectuais.
No Brasil, o início do ativismo gay ocorreu em 1978, com a fundação do grupo Somos, em São Paulo, e do jornal "Lampião", no Rio de Janeiro. Ainda assim, restringia-se às classes médias. A guinada para um movimento de massas começou em meados da década de 90, com as paradas do orgulho gay, que já existem em mais de 30 cidades do Brasil. O clímax foi a ocorrência em São Paulo, no dia 13 de junho passado, da maior parada gay do mundo, com pelo menos 1,5 milhão de participantes, segundo dados da PM. Isso aponta para uma verdadeira mutação cultural no Brasil, país do "faça, mas não diga".


A dimensão do estigma transformou o homossexual numa espécie de leproso moral


Ao contrário dos EUA, nunca tivemos leis que reprimissem a prática homossexual. No entanto o Brasil é um dos países que mais persegue e mata homossexuais, segundo as estatísticas existentes. As próprias famílias abafam os processos policiais, envergonhadas de expor a homossexualidade dos seus parentes assassinados. A dimensão do estigma transformou o homossexual numa espécie de leproso moral.
Isso reflete a conjuntura internacional. A ONU continua se recusando a aceitar a homossexualidade como um direito humano. O vigário de Cristo, João Paulo 2º, usa o nome de Deus para veicular homofobia e reforçar preconceitos, incentivando a violência contra pessoas cuja única culpa é amar fora dos padrões impostos. Talvez ele desconheça pesquisas norte-americanas comprovando que adolescentes homossexuais são sete vezes mais sujeitos a tentativas de suicídio do que seus colegas héteros, por problemas de auto-estima.
Se homossexuais não precisam de licença do papa para amar, também recusam a crueldade com que o Vaticano tem condenado o amor homossexual. Tal intolerância evidencia como a Igreja Católica perdeu a dimensão do amor humano, mas também denuncia como a homossexualidade é sua grande sombra. De fato, um dos motivos da Reforma protestante de Lutero foi sua reprovação à grande incidência da prática homossexual no clero católico de então.
Tal fenômeno não mudou, se considerarmos os atuais escândalos de padres pedófilos -que indicam mais uma questão de homossexualidade reprimida, já que, na imensa maioria dos casos, as vítimas são do sexo masculino. A clandestinidade a que estão sujeitos os padres homossexuais torna mais fácil atacar coroinhas do que freqüentar abertamente a cena gay. Não por acaso, certas dioceses americanas estão à beira da falência, graças aos gastos com processos movidos contra seus padres ditos pedófilos. É a Igreja Católica pagando um alto preço por sua homofobia.
A pressão política exercida pelos movimentos homossexuais de massa começa a surtir efeito também no Brasil, onde a comunidade gay desponta como o mais novo bloco de importância eleitoral. Por um lado, aumentam no país as cidades e Estados que implantaram leis anti-homofóbicas. No âmbito do governo federal, acaba de ser instituído o programa Brasil contra a Homofobia, elaborado por lideranças homossexuais de todo o país. No bojo da recém-criada Frente Parlamentar Estadual pela Livre Expressão Sexual, a Assembléia Legislativa de São Paulo realizou uma inédita sessão solene para celebrar o orgulho gay, mesmo contra a oposição dos deputados evangélicos. Em Brasília, terminou há poucos dias o 2º Congresso da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (Abeh), com representantes universitários de todo o Brasil e do exterior, tomando de assalto a academia, ainda muito refratária aos estudos homoeróticos.
Pode-se dizer que, hoje, cidadãos e cidadãs homossexuais estão mais confiantes na conquista da sua dignidade pessoal. Cada vez mais, sentem orgulho de sua maneira de amar, ao compreenderem que não há nada de errado com ela. A solidariedade dos movimentos homossexuais de massa incrementa-lhes a sensação de pertencerem a uma comunidade e reforça sua auto-estima. A maior visibilidade social oferece uma auto-imagem positiva às novas gerações homossexuais. E passa uma lição de tolerância, como na Parada do Orgulho Gay de São Paulo, pela diversidade crescente de participantes.
A parada é hoje a maior festa política deste país, a favor da liberdade de amar, contra a culpa. A multidão que lotou a Paulista e a Consolação realizou uma imensa celebração amorosa, na contramão da cultura homofóbica. Mostrou homossexuais celebrando uma nova compreensão do amor e ensinando este país a lutar pelo direito de amar -uma proposta política digna de sociedades democraticamente sofisticadas. Queremos pão, mas queremos rosas também. É motivo para nós da comunidade homossexual termos orgulho. E para o Brasil ter orgulho dos seus cidadãos e cidadãs homossexuais.

João Silvério Trevisan, 60, escritor e roteirista, é autor de "Em Nome do Desejo", "Devassos no Paraíso" e "Ana em Veneza" (todos publicados pela ed. Record).


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