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TENDÊNCIAS/DEBATES
Os esportes de alto rendimento são sobrevalorizados no Brasil?
SIM
Uma política de Estado para o esporte
RAUL MILLIET
Uma política de esportes em um
país como o Brasil deve contemplar, como prioridade quase absoluta, o
esporte social, com a maior parte dos
recursos públicos para o setor.
Consideramos esporte social o esporte cidadão, voltado ao atendimento das
camadas mais pobres da população,
praticado nas escolas e bairros populares. No que tange ao esporte de alto rendimento, pode e deve existir uma relação de complementaridade com o esporte social, sendo que este último deve
buscar na iniciativa privada a quase totalidade dos recursos necessários para
efetivar seus projetos.
Uma política de Estado para o esporte
no Brasil, dentro de uma perspectiva de
democracia política e social (que nunca
existiu, a não ser em projetos focalizados), não pode ser encaminhada descolada da realidade social mais ampla. Na
verdade, uma política de esporte deve
ser concebida no quadro mais geral das
políticas sociais, abordada como política pública, sobretudo como política pública de educação.
Por outro lado, seria impensável traçar políticas sociais não vinculadas organicamente à política econômica, incluindo uma política de esporte. Tendo
em vista o caráter regressivo e concentracionista que prevalece em nosso país,
notadamente nos últimos 20 anos, as
políticas sociais compensatórias ganham dimensões crescentes ao mesmo
tempo em que se tornam cada vez mais
ineficazes, porque substitutivas da ausente política progressiva de renda.
E qual a política econômica hegemônica nas duas últimas décadas, inclusive
no governo Lula? Não vou repetir o que
vários articulistas têm dito; o que o próprio presidente do BNDES, Carlos Lessa, tem esposado, com arrojo e coerência. Creio que fica patente a hipocrisia
da defesa de políticas públicas fatiadas,
concebidas no varejo, como panacéia
para mazelas sociais. Não pretendo defender propostas liqüidacionistas, anulando efeitos positivos de políticas sociais específicas; só quero assinalar suas
limitações incontornáveis nesse quadro
mais geral.
No caso específico das Olimpíadas,
várias pessoas que têm analisado o assunto estão roucas, cansadas de tanto
repetir que a tese de que é necessário investir prioritariamente no esporte de alto nível, objetivando, através do exemplo dos ídolos e das vitórias, expandir a
base, é duplamente equivocada. Em primeiro lugar, porque sem a formação de
uma estrutura não se pode pensar no
desdobramento mágico, autônomo, de
novos clubes, novas equipes; por outro
lado, em um país como o Brasil, onde o
alto grau de indigência social assume
contornos de uma situação emergencial, seria no mínimo um contra-senso
definir como prioritário o apoio do Estado ao esporte de alto rendimento.
Cabe ao Estado, nesse setor da vida
pública, investir onde sua ação possibilitar a criação de mecanismos geradores
de novos empregos, além da multiplicação de programas complementares à
formação escolar da criança de baixa
renda. Nunca é demais lembrar que investimentos no esporte social têm uma
capacidade de geração de emprego cinco vezes maior (custo per capita) do que
no alto rendimento. Nesse caso, os recursos devem ser investidos quase que
exclusivamente em custeio: pessoal
(professores, estagiários, pedagogos
etc.), material esportivo e alimentação.
Todos os levantamentos realizados
apontam para uma subutilização das
áreas esportivas existentes, que, em sua
maioria, demandam, quando muito,
pequenas reformas, solucionáveis com
investimentos locais insignificantes. E
um país como o nosso, antes de pretender se transformar em potência olímpica, deve almejar garantir o acesso da população a padrões mínimos de vida.
Por fim, não poderíamos deixar de
grifar nosso inconformismo com a gestão do ministro Agnelo Queiroz, que,
por meio da Lei Agnelo-Piva, dos repasses de estatais (assistidos no mínimo
passivamente pelo ministro), possibilitou uma apropriação privada de recursos públicos, transferindo para o COB e
as principais confederações a condução
de fato da política pública de esportes
no Brasil, privilegiando o alto rendimento, que conta hoje com mais recursos que o próprio ministério, mantendo
vivos os velhos mecanismos do capitalismo cartorial brasileiro. Onde estamos? No Queen Mary ou no Titanic?
Por fim, qualquer lei de incentivo fiscal -leia-se renúncia fiscal- tem o
mesmo impacto sobre os cofres públicos que as dotações aportadas pelo Orçamento da União. Repasses efetuados
diretamente pelo Executivo federal, mediante planejamento prévio, permitem
controle mais rígido dos gastos, além de
uma maior racionalidade de resultados,
através de parcerias e integração com
outras esferas de poder -se é isso que
se pretende, bem entendido.
Outro aspecto refere-se à promiscuidade de associar jogos de azar, muitas
vezes controlados por grupos mafiosos,
à liberação de verbas para o esporte (como os bingos). Incentivando práticas
como essas, que, mesmo gerenciadas
com lisura, semeiam perversamente a
ilusão do enriquecimento fácil, o governo revela sua insensibilidade diante da
tragédia em que vive a maioria de nossa
população.
Raul Milliet Filho, 52, doutorando em história
social na USP, pesquisa a história do futebol no
Brasil e é especialista em políticas públicas na
área social.
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