São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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Eleição e direito de propriedade

JOAQUIM FALCÃO

O mito de que o prefeito pouco pode fazer para universalizar o direito de propriedade paira sobre os candidatos

CADA PAÍS reconhece diferentemente e, às vezes, por caminhos tortuosos o direito de todo cidadão a ter um abrigo, uma casa, uma habitação estável e legal.
Nos EUA, por exemplo, os US$ 700 bilhões que o governo Bush gastará para enfrentar a crise do mercado de hipotecas transformarão um título privado de mercado -o título hipotecário- numa obrigação estatal. Indiretamente, o devedor receberá uma espécie de "vale-casa-própria" a ser pago pelo contribuinte.
No Brasil, também temos sido tortuosos na universalização do direito de propriedade para moradia. Sem propriedade individual, a sociedade não é nação, mas acampamento, diria Celso Furtado. Nosso Estado democrático de Direito está plantado em areia movediça.
Os números falam por si.
Pelo IBGE, quase 100% das cidades de população de mais de 500 mil habitantes e 80% das cidades entre 100 mil e 500 mil habitantes têm assentamentos irregulares. Nessas cidades haverá eleições. Mas poucos candidatos têm propostas para esse problema estrutural de nossa economia.
Provavelmente, entre 20% e 30% da população urbana mora nesses assentamentos. No último Censo Demográfico, havia cerca de 26% da população em mais de 12 milhões de habitações irregulares. O Ministério das Cidades indica que, de 2004 a 2006, o déficit habitacional para todas as faixas de renda aumentou quase 10%.
A areia movediça é tamanha que o "Observador Brasil 2008", do Ipsos, indica que o brasileiro gasta duas vezes mais em cigarros do que com financiamento de imóvel! Nas capitais não faltam propriedades, faltam propriedades para habitações populares.
O que sustenta essa areia movediça é, por um lado, a impossibilidade de o Estado controlar a expansão da ilegalidade habitacional coletiva. Vivemos um "para-Estado de Direito", em que a ausência do Estado não é imperfeição do sistema, mas condição amortizadora. Permite equilíbrio precário.
Por outro lado, uma série de "by passes" sublegais e criativos -gatos e puxadinhos- permite aos cidadãos usar terrenos anônimos, serviços públicos e privados sem pagar impostos sem ser incomodados. O que tem explicação econômica: a ilegalidade habitacional é o único custo compatível com a efêmera renda de cerca de 50% dos trabalhadores brasileiros do mercado informal. Faces da mesma moeda: informalidade do emprego e ilegalidade da propriedade.
Em 1930, a carteira de trabalho foi o documento da cidadania, observou Wanderley G. dos Santos. No século 21, a escritura do imóvel deveria confirmar a cidadania. Ainda não o faz. Como implantar segurança jurídica e cultura de respeito aos contratos se os dois mais importantes contratos da cidadania -o de trabalho e a escritura da casa própria- ainda não regulam a maioria das relações sociais?
Não sem tempo, o desafio da universalização do direito de propriedade para moradia começa a entrar na pauta eleitoral. Mas de forma tortuosa: pela correlação palpável entre a "despropriedade urbana", fruto da ausência do Estado e do mercado, e o controle de áreas urbanas pelo tráfico e milícias. A despropriedade urbana é a causa primária da imensa maioria das doenças das capitais brasileiras.
Violência, inclusive -e sobretudo.
As propostas dos candidatos são necessárias, mas insuficientes. Alguns propõem controle da ilegalidade coletiva nas favelas: conter a expansão e proibir a verticalização. Como?
Com muros? Com tropas? Sem oferecer alternativa habitacional? Outros propõem revitalizar centros urbanos decadentes, pedir recursos ao governo federal para regularização fundiária ou expandir a bolsa-aluguel.
Mas o fato é que nenhuma prefeitura tem caixa e nenhum candidato tem projeto completo para enfrentar, de forma concomitante, o problema em toda a sua dimensão. Nem esse mercado interessa à indústria da construção civil. As conseqüências continuarão a cair, em fogo, nas mãos do prefeito eleito.
O mito de que o prefeito pouco pode fazer para universalizar o direito de propriedade paira sobre os candidatos. De fato, a regularização urbana é doloroso exercício de paciência burocrática. Novas leis, complementando as atuais, compatíveis com necessidades sociais plurais e que já existem em sociedades avançadas são competência do Congresso Nacional.
Mas estratégias múltiplas, desde estímulos fiscais à construção e financiamento de casas populares, desburocratização da regularização -como faz o Ministério das Cidades-, mobilização no Congresso e em órgãos internacionais, federais e estaduais, públicos e privados, são, sim, possíveis aos prefeitos. A precondição é que os candidatos priorizem a universalização do direito de propriedade para moradia. Pois é nas eleições que o país toma consciência e enfrenta seus principais problemas.


JOAQUIM FALCÃO, 65, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e doutor em educação pela Universidade de Genebra (Suíça), é diretor da Escola de Direito da FGV-RJ e membro do Conselho Nacional de Justiça.


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