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EFEITO COLATERAL
O caso antraz provocou um
efeito colateral inesperado ao
pôr em questão, nos EUA, o conflito
entre proteção à propriedade intelectual, isto é, patentes de medicamentos, e interesses da saúde pública.
Desde que terroristas começaram a
disseminar esporos do antraz, aumentou enormemente a procura por
Cipro, o único antibiótico recomendado pela FDA, a agência sanitária
dos EUA, para tratar a forma pulmonar da moléstia. Calcula-se que 10
mil americanos estejam tomando Cipro, embora os casos diagnosticados não passem de poucas dezenas.
Cipro é o nome comercial da ciprofloxacina da Bayer, antibiótico da
classe das quinolonas. Cada comprimido de Cipro custava nos EUA, até a
semana passada, US$ 1,75.
Autoridades sanitárias dos Estados
Unidos entraram em negociações
com a Bayer. Chegou-se a falar em
quebra de patentes. O laboratório
alemão concordou em reduzir o preço para 95 centavos nos primeiros
100 milhões de unidades. Ciprofloxacinas genéricas custam entre 12 e
20 centavos no mercado global.
Os responsáveis pela negociação
cantaram vitória. Talvez até fosse, se
a ciprofloxacina fosse de fato o único
medicamento capaz de combater o
Bacillus anthracis, o agente causador
do antraz. Essa bactéria, que em estado natural raramente infecta seres
humanos, é sensível a diversas classes de antibióticos, incluindo penicilinas e tetraciclinas, que são bem
mais antigas (sem patente) e muito
mais baratas do que a Cipro.
Laboratórios que concorrem com a
Bayer ofereceram ao governo dos
EUA grandes lotes de remédios antiantraz gratuitamente, em troca apenas de a FDA aprovar suas drogas para o tratamento do bacilo. Aliás, os
EUA são um dos últimos países do
mundo em que a patente da droga
ainda é válida, existindo, portanto,
ampla produção mundial de genéricos, inclusive no Brasil.
A indicação da ciprofloxacina como droga de escolha contra o antraz
é de fato obscura. No ano passado,
uma comissão de legisladores investigava a ameaça de bioterrorismo.
Concluiu que tanto a penicilina
quanto a doxiciclina seriam tratamentos eficazes contra o antraz. Mas
o comitê não as recomendou. Escolheu a ciprofloxacina. A alegação é a
de que havia indícios de que terroristas teriam produzido cepas de antraz
resistentes a essas drogas. Também
se falou no risco de o uso indiscriminado de penicilina originar linhagens de bactérias multirresistentes.
São argumentos teóricos válidos,
mas que servem para todos os antibióticos, inclusive a ciprofloxacina.
Independentemente dos desdobramentos dessa história intricada, o caso serve para mostrar que nem mesmo os EUA estão imunes à disputa
patente X saúde pública. A pressão
que as autoridades sanitárias colocaram sobre a Bayer não é diferente,
por exemplo, da que países pobres
exercem -e com firme oposição dos
EUA- sobre laboratórios que produzem remédios contra a Aids.
O caso antraz deveria servir para estabelecer, de uma vez por todas, que
nenhuma patente pode prevalecer
sobre o direito à vida, ou seja, sobre o
direito a receber tratamento médico.
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