São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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EFEITO COLATERAL

O caso antraz provocou um efeito colateral inesperado ao pôr em questão, nos EUA, o conflito entre proteção à propriedade intelectual, isto é, patentes de medicamentos, e interesses da saúde pública.
Desde que terroristas começaram a disseminar esporos do antraz, aumentou enormemente a procura por Cipro, o único antibiótico recomendado pela FDA, a agência sanitária dos EUA, para tratar a forma pulmonar da moléstia. Calcula-se que 10 mil americanos estejam tomando Cipro, embora os casos diagnosticados não passem de poucas dezenas.
Cipro é o nome comercial da ciprofloxacina da Bayer, antibiótico da classe das quinolonas. Cada comprimido de Cipro custava nos EUA, até a semana passada, US$ 1,75.
Autoridades sanitárias dos Estados Unidos entraram em negociações com a Bayer. Chegou-se a falar em quebra de patentes. O laboratório alemão concordou em reduzir o preço para 95 centavos nos primeiros 100 milhões de unidades. Ciprofloxacinas genéricas custam entre 12 e 20 centavos no mercado global.
Os responsáveis pela negociação cantaram vitória. Talvez até fosse, se a ciprofloxacina fosse de fato o único medicamento capaz de combater o Bacillus anthracis, o agente causador do antraz. Essa bactéria, que em estado natural raramente infecta seres humanos, é sensível a diversas classes de antibióticos, incluindo penicilinas e tetraciclinas, que são bem mais antigas (sem patente) e muito mais baratas do que a Cipro.
Laboratórios que concorrem com a Bayer ofereceram ao governo dos EUA grandes lotes de remédios antiantraz gratuitamente, em troca apenas de a FDA aprovar suas drogas para o tratamento do bacilo. Aliás, os EUA são um dos últimos países do mundo em que a patente da droga ainda é válida, existindo, portanto, ampla produção mundial de genéricos, inclusive no Brasil.
A indicação da ciprofloxacina como droga de escolha contra o antraz é de fato obscura. No ano passado, uma comissão de legisladores investigava a ameaça de bioterrorismo. Concluiu que tanto a penicilina quanto a doxiciclina seriam tratamentos eficazes contra o antraz. Mas o comitê não as recomendou. Escolheu a ciprofloxacina. A alegação é a de que havia indícios de que terroristas teriam produzido cepas de antraz resistentes a essas drogas. Também se falou no risco de o uso indiscriminado de penicilina originar linhagens de bactérias multirresistentes. São argumentos teóricos válidos, mas que servem para todos os antibióticos, inclusive a ciprofloxacina.
Independentemente dos desdobramentos dessa história intricada, o caso serve para mostrar que nem mesmo os EUA estão imunes à disputa patente X saúde pública. A pressão que as autoridades sanitárias colocaram sobre a Bayer não é diferente, por exemplo, da que países pobres exercem -e com firme oposição dos EUA- sobre laboratórios que produzem remédios contra a Aids.
O caso antraz deveria servir para estabelecer, de uma vez por todas, que nenhuma patente pode prevalecer sobre o direito à vida, ou seja, sobre o direito a receber tratamento médico.


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