São Paulo, segunda-feira, 28 de outubro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Brilha uma estrela

MARIA VICTORIA BENEVIDES

O político pra ser feliz
Precisa ver a sociedade
As camadas mais baixas da cidade
Essa gente que precisa ter um chão
E não negar o direito ao pão
Pra quem esse pão foi fabricado.
Pra ser um político equilibrado
É preciso vergonha e vocação.
João Furiba

Lula tem as duas virtudes desse cordel nordestino, a "vergonha na cara", que define o caráter de um homem íntegro e cumpridor de sua palavra, e também a inegável vocação para a liderança, a luta, o interesse público, a defesa dos fracos, humilhados e ofendidos. Sua história de vida e empenho para conquistar o poder e nele atuar com os ideais imorredouros da liberdade, da igualdade e da solidariedade sempre deram o maior brilho à estrela petista.
Mas, apesar da trajetória exemplar, raros dentre nós, acadêmicos seus admiradores, acreditávamos que algum dia Lula, o metalúrgico, chegasse à Presidência da República. Acreditávamos no partido, a grande novidade na história brasileira, de raízes realmente populares, criado de baixo para cima, e que se tornou o maior partido de esquerda do mundo.
Todavia temíamos e muito a inércia da nossa cultura política, a doença genética do bacharelismo e do anel de doutor, o poder dos ilustrados e endinheirados sobre o povão desinformado e manipulado. A tal "falta de preparo" de nosso líder operário, apesar de fabricada com os ardis daqueles que só defendem a "democracia da gravata lavada", como diz a Circular dos Liberais de 1860, podia ser constrangedora. Tinha razão Einstein quando dizia ser mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito.
A vitória de Lula pode mostrar que o preconceito foi parcialmente quebrado, mas não se extinguiu. Lula presidente será injustamente cobrado pelo que os doutores fizeram e por aquilo que ele não poderá fazer em "tempo real". Já avisou que milagres são impossíveis e que não governará sozinho, mas com uma equipe preparadíssima, além de querer a participação da sociedade organizada, bandeira do PT na prática da democracia participativa.


A vitória de Lula pode mostrar que o preconceito foi parcialmente quebrado, mas não se extinguiu


Os próprios acusadores do "despreparo" serão os primeiros a dele exigir um desempenho de santo milagreiro. Essa será uma das primeiras armadilhas a serem desarmadas. Armadilha que é, de certo modo, a contrapartida do terrorismo eleitoral que sempre marcou as campanhas antipetistas.
Vale a pena lembrar. Na campanha de 1989, empresários e políticos ditos "modernos" votam em Collor, mesmo sem confiar nele, tornando-se cúmplices da vileza contra o PT e seu candidato. Em 1994, Mário Amato vaticina que a vitória de Lula provocaria a debandada dos empresários do país. Em 1998, nova investida contra Lula ameaça com descrédito no exterior, fuga de capitais, violência no campo e nas cidades etc.
A retórica do caos venceu todas, como uma espécie de "destino manifesto" do poder de nossas elites. E a classe média, refém do medo e da TV Globo, duas vezes referendou a contrafacção da social-democracia à moda tucana. Coitada, pagou -pagamos- a conta e pouco recebeu da mão espalmada do presidente sociólogo, que prometeu emprego, educação, saúde, segurança e reforma agrária. O povão continuou a comer o pão que o diabo amassou.
Hoje tais recordações servem para vacinar os que ainda acreditam na eficácia do terrorismo eleitoral. Pela quarta vez, Lula enfrentou a velha satanização, mas conseguiu o apoio de ampla maioria do povo, para si e para seus candidatos nos Estados e para o Legislativo. Como isso foi possível? Creio que cinco pontos merecem destaque:
O povo, profundamente insatisfeito com o governo de FHC, passou a acreditar que "uma mudança para melhor" era possível e que o risco da incerteza é preferível à estagnação com desemprego e falta de perspectivas;
O povo aprendeu, a duríssimas penas, a confiar em alguém que veio também do povo, valorizando a ascensão de Lula com orgulho, o que não acontecia antes;
As classes dominantes não conseguiram dirigir o processo eleitoral -tiveram que engolir, admiradas e ciumentas, a eficiente atuação das lideranças do PT e do próprio Lula no processo de ampliação de alianças "para o centro", com partidos, empresários, com as chamadas "forças vivas da nação", legitimando-se para conduzir democraticamente um necessário pacto social;
O PT elaborou, com engenho e arte, um programa de governo com participação dos melhores especialistas do país e o transformou em linguagem acessível para público de rádio e TV;
Líderes e militantes do PT conseguiram explicar a defesa dos direitos humanos, entendidos como direitos e liberdades individuais, mas também direitos sociais, econômicos e culturais.
Lula respondeu à retórica do medo com otimismo e esperança, e é isso que todos querem, esperança na pátria amada, Brasil.


Maria Victoria de Mesquita Benevides, 60, socióloga, é professora titular da Faculdade de Educação da USP e autora, entre outras obras, de "O Governo Kubitschek" e "A UDN e o Udenismo".


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Brasilio Sallum Jr.: De Lula a Luiz Inácio da Silva

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.