São Paulo, segunda-feira, 28 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

De Lula a Luiz Inácio da Silva

BRASILIO SALLUM JR.

O Brasil amanheceu com um novo presidente eleito. Surge sufragado por uma ampla e indiscutível maioria de eleitores. O candidato, o seu partido e todos nós temos motivos para comemorar. Uns pela vitória e todos nós pela democracia que, em maior ou menor medida, ajudamos a construir nos últimos decênios.
O que esperar do próximo governo? Será de esquerda? Ou Lula terá se acomodado em demasia ao establishment? Embora estas questões só possam ser respondidas com mais precisão no futuro, é notório que as elites políticas e econômicas do país vêm tecendo uma rede de proteção em torno de Lula e da cúpula do PT para lhe dar um mínimo de governabilidade, evitando que a mudança de governo produza abalos sérios à estabilidade econômica e política do país.
Seguramente esse movimento de proteção/contenção não se produziu de graça. Em primeiro lugar, a direção do PT e Lula abandonaram a retórica socialista e a defesa do estatismo desenvolvimentista em favor de um programa orientado por uma versão mais "liberal" do desenvolvimentismo, similar à defendida, há muito tempo, pela ala esquerda do governo FHC, com José Serra à frente.
Uns e outros batem-se pela redução da vulnerabilidade externa, por uma política firme de estímulo às exportações e, em geral, por um Estado que estimule a produção e o emprego, sem retorno ao protecionismo ou ampliação das de suas funções empresarias. Mais ainda: a direção do PT prometeu rezar pela cartilha do respeito aos contratos, do ajuste fiscal e do câmbio flutuante.
Em segundo lugar, o PT não ficou nas palavras. Aliou-se ao Partido Liberal e, principalmente, fez do senador empresário Alencar o vice de Lula, contrariando sua ala esquerda.
Em terceiro lugar, Lula é um ícone oposicionista tão forte que sua campanha pôde se desenvolver com um mínimo de agressividade.
Por último -e esta a sua grande diferença política em relação a Serra-, comprometeu-se a governar negociando não apenas com os partidos políticos, mas com as forças organizadas da sociedade (incluindo as mais conservadoras). Em outras palavras, contrapôs a idéia de negociação e pacto à de eficiência na gestão governamental, enfatizada por Serra.
Mas não foi apenas o PT que se moveu. O bloco hegemônico que exerceu o poder durante o período FHC também alterou o peso relativo dos seus componentes. A candidatura Serra expressou a perda de poder político tanto dos agrupamentos políticos mais conservadores do bloco como dos segmentos próximos ao fundamentalismo de mercado. Dessa maneira, o bloco todo inclinou-se para a esquerda, na direção de um ideário liberal-desenvolvimentista e em favor de uma democracia menos permeável a práticas arbitrárias dos governantes.


É preciso dar um voto de confiança na capacidade de adaptação criativa de Lula e de sua equipe à nova situação


Certamente os movimentos de aproximação entre o PT e o establishment não eliminaram suas diferenças. O PT não só tem uma minoria de "esquerda" que não acompanhou o movimento de adaptação "liberal" da cúpula do partido, como está enraizado em organizações de assalariados e movimentos populares que dificilmente deixarão de desencadear pressões distributivas, manifestando-se nas ruas, no parlamento e na mídia.
Assim, Lula e a facção majoritária do PT terão que realizar a difícil tarefa de conciliar as demandas do establishment por uma gestão "responsável" da economia com as reivindicações da "esquerda" do partido, das organizações sociais, dos governadores e prefeitos inclinados a demandar políticas mais nacionalistas e menos rígidas do ponto de vista fiscal ou monetário.
Tudo sem falar em dois outros componentes importantes da equação: a dificuldade de formar uma maioria estável no Congresso e as limitações externas decorrentes da guinada conservadora no plano internacional, com a eleição de George W. Bush, especialmente depois dos atentados de 11 de setembro de 2001.
Nos próximos dois meses veremos a passagem "assistida" do vitorioso da condição de Lula, símbolo da oposicionismo e do movimento de democratização do país, para a condição de Luiz Inácio da Silva, presidente da República. Nomes para a área econômica, salário mínimo, acordo com o FMI, tributos -todas essas questões serão testes preliminares da capacidade de governo dos eleitos.
É preciso dar um voto de confiança à capacidade de adaptação criativa de Lula e de sua equipe à nova situação. Ainda mais que FHC, obedecendo democraticamente à vontade popular, está lhes dando condições político-administrativas antes inimagináveis para que tenhamos um bom governo, digno da democracia que todos construímos.


Brasilio Sallum Jr. é professor do Departamento de Sociologia da USP e autor de "Labirintos - Dos generais à Nova República" (Hucitec).




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