São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Pensamentos repetidos

RIO DE JANEIRO - O homem encontrou o cão e pensou: "Isso é um cão". O cão encontrou o homem e pensou: "Isso é um homem". Ambos pensaram errado. O homem que viu o cão não percebeu que o cão não era cão, mas cadela. E a cadela que viu o homem não percebeu que o homem era mulher.
A mulher seguiu caminho e logo esqueceu que vira um cão, que afinal não era cão, mas cadela. E a cadela também seguiu caminho e logo esqueceu que vira um homem, que na realidade não era homem, mas mulher.
A mulher logo adiante viu um sinal no céu e pensou: "Vai chover, vou para casa". A cadela nada viu no céu, mas pensou: "Se chover, não tenho para onde ir".
Acontece que a mulher não chegou a ir para casa. A bala perdida a atingiu, ela perdeu sangue antes de perder a vida. A cadela, que não tinha o que perder, perdeu a liberdade, foi presa pela carrocinha da prefeitura. E, tendo perdido a liberdade, perdeu a vida, sacrificada onde os animais sem liberdade perdem a vida porque nada têm a perder.
Moral (ou imoralidade da fábula): pensar atrapalha a vida, seja do homem ou da mulher, seja do cão ou da cadela. Nem adianta pensar com as mesmas palavras, repetindo-as com ou sem sentido. Muito menos pensar com pensamentos, que pensam por si mesmos e não dependem de um homem, de uma mulher, de um cão ou de uma cadela para pensar.
Machado de Assis fez um cão pensar. Pensava mais do que o dono, que pensava errado ou simplesmente não pensava. Nas historinhas infantis, os cães pensam e as crianças pensam que os cães pensam engraçado.
A lei do estilo proíbe a repetição de palavras e pensamentos. A lei sem estilo nada proíbe, porque tudo já está proibido. Apesar das leis, todos pensam que os outros pensam. Por isso, o homem encontrou o cão e, em vez de não pensar, pensou: "Isso é um cão". E o cão pensou: "Isso é um homem".


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