São Paulo, terça-feira, 29 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A miséria da política

DEMÉTRIO MAGNOLI

As populações não confundem, de modo nenhum, a subalimentação ou a má nutrição de que sofrem permanentemente, ou durante longos períodos, com a fome, que elas temem como uma catástrofe e que, muitas vezes, provoca movimentos de êxodo ou de pânico. Fome é gente morrendo em grande número ao longo das estradas, e os que ainda não morreram sem forças sequer para enterrá-los.
Yves Lacoste ("Contra os Antiterceiro-Mundistas e Contra Certos Terceiro-Mundistas", São Paulo, Ática, 1991, pág. 41).

A fome desapareceu da maior parte do mundo no século 20. A modernização das economias e, com ela, o desenvolvimento das infra-estruturas de transporte e comunicação proporcionaram a possibilidade e a necessidade de evitar as catástrofes que, antes, dizimavam grupos populacionais inteiros.
Antes a fome se abatia, periodicamente, em ciclos de secas ou episódios de guerra, sobre populações que viviam em limites próximos ao da subsistência e dependiam da agricultura tradicional ou do pastoreio. Essas tragédias permaneciam inscritas na memória regional, mas não tinham quase nenhum impacto em lugares mais distantes, em função do relativo isolamento das populações atingidas.
A modernização dos transportes e das comunicações transformou radicalmente o cenário. As catástrofes da fome tornaram-se eventos de impacto político nacional e mundial. Ao mesmo tempo, a economia moderna ofereceu os instrumentos para alimentar as populações pobres submetidas a crises agudas de fome. A imensa maioria dos Estados tem, atualmente, condições financeiras e técnicas de deslocar ajuda de emergência a regiões atingidas por secas, enchentes ou pragas antes que as pessoas comecem a tombar, mortas, sob o peso da fome.
Os Estados temem as catástrofes de fome, pois as imagens de "gente morrendo em grande número ao longo das estradas, e os que ainda não morreram sem forças sequer para enterrá-los" têm o poder de provocar revoltas sociais. É por isso que, mesmo em países muito pobres e submetidos a regimes autoritários, os governos mobilizam recursos internos e ajuda internacional para controlar as crises episódicas de fome, impedindo que se tornem catástrofes.
A fome, atualmente, é uma tragédia circunscrita a um reduzido grupo de países paupérrimos, ocorrendo em épocas de secas ou enchentes que se associam ao colapso do poder central. Nas últimas décadas, catástrofes de fome ocorreram na Etiópia, Somália, Sudão, Moçambique, Ruanda, Coréia do Norte e, na maior parte dos casos, resultaram de guerras civis.


No Brasil não existe fome. Aqui, como reflexo das desigualdades sociais e regionais extremas, existe subalimentação


No Brasil não existe fome. Aqui, como reflexo das desigualdades sociais e regionais extremas, existe subalimentação e má nutrição. Essa é uma tragédia vergonhosa, que pesa sobre a população mais pobre e ainda mantém inaceitavelmente elevadas as taxas de mortalidade infantil. Mas, no plano político e social, é preciso distinguir essa tragédia da fome, pois as respostas para uma são diversas das respostas para a outra.
A tela "Retirantes", de Portinari, pintada em 1944, funcionou como bandeira política para as oligarquias nordestinas que se serviam da miséria regional e das últimas grandes crises de fome para capturar verbas públicas federais. As estradas e os açudes do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), as frentes de trabalho e a distribuição de cestas básicas valorizavam os latifúndios e, simultaneamente, enraizavam o poder dos coronéis que intermediavam os programas federais.
O candidato Lula concentrou as suas promessas de ação social no tema do combate à fome. O presidente eleito Lula anuncia que, em virtude dos limites orçamentários, o Fome Zero é a prioridade social da parte inicial do seu mandato. O discurso sobre a fome no Brasil, que se fundamenta na falsificação conceitual, esconde um projeto político retrógrado. O programa de distribuição generalizada de cupons alimentares e cestas básicas para a população mais pobre oculta o verdadeiro desafio social e fornece um poderoso instrumento de manipulação política para as elites e oligarquias regionais.
A distribuição de cestas básicas justifica-se em episódios de secas prolongadas, que ameacem provocar crises de fome. Mas o Fome Zero projeta distribuir cupons alimentares e cestas básicas em regime permanente, para famílias que não dispõem de determinado patamar de renda monetária.
Definido assim, o Fome Zero é um presente para os controladores da rede de distribuição: governadores, prefeitos e políticos locais, que poderão dispor, todos os meses, de um passaporte físico para o sequestro dos corações e das mentes da população pobre.
Os cupons e cestas certamente ajudarão os mais pobres, que poderão escolher entre consumir ou vender os alimentos. Mas não irão acabar com o que não existe -a fome- e pouca influência podem exercer sobre o que existe -a subalimentação ou má alimentação, que decorrem da carência de renda. O combate à subalimentação e à má alimentação exigem mudanças sociais estruturais, ligadas à educação, ao emprego e à estrutura fundiária.
O programa Renda Mínima, proposto pelo senador Suplicy (PT-SP), poderia contribuir, temporariamente, para amenizar essas tragédias. Ele tem a grande vantagem da impessoalidade, pois a complementação da renda não envolve cupons, caminhões, cestas básicas, centros de distribuição física, autoridades e políticos locais.
Lula escolheu o Fome Zero. O "companheiro Sarney", comovido, agradece.


Demétrio Magnoli, 43, doutor em geografia humana pela USP, é editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional".


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