São Paulo, terça-feira, 29 de outubro de 2002 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES A miséria da política DEMÉTRIO MAGNOLI
As populações não confundem, de modo nenhum, a subalimentação ou a má nutrição
de que sofrem permanentemente, ou durante longos períodos, com a fome, que elas
temem como uma catástrofe e que, muitas
vezes, provoca movimentos de êxodo ou de
pânico. Fome é gente morrendo em grande
número ao longo das estradas, e os que ainda não morreram sem forças sequer para
enterrá-los.
A fome desapareceu da maior parte
do mundo no século 20. A modernização das economias e, com ela, o desenvolvimento das infra-estruturas de
transporte e comunicação proporcionaram a possibilidade e a necessidade
de evitar as catástrofes que, antes, dizimavam grupos populacionais inteiros.
No Brasil não existe fome. Aqui, como reflexo das desigualdades sociais e regionais extremas, existe subalimentação e má nutrição. Essa é uma tragédia vergonhosa, que pesa sobre a população mais pobre e ainda mantém inaceitavelmente elevadas as taxas de mortalidade infantil. Mas, no plano político e social, é preciso distinguir essa tragédia da fome, pois as respostas para uma são diversas das respostas para a outra. A tela "Retirantes", de Portinari, pintada em 1944, funcionou como bandeira política para as oligarquias nordestinas que se serviam da miséria regional e das últimas grandes crises de fome para capturar verbas públicas federais. As estradas e os açudes do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), as frentes de trabalho e a distribuição de cestas básicas valorizavam os latifúndios e, simultaneamente, enraizavam o poder dos coronéis que intermediavam os programas federais. O candidato Lula concentrou as suas promessas de ação social no tema do combate à fome. O presidente eleito Lula anuncia que, em virtude dos limites orçamentários, o Fome Zero é a prioridade social da parte inicial do seu mandato. O discurso sobre a fome no Brasil, que se fundamenta na falsificação conceitual, esconde um projeto político retrógrado. O programa de distribuição generalizada de cupons alimentares e cestas básicas para a população mais pobre oculta o verdadeiro desafio social e fornece um poderoso instrumento de manipulação política para as elites e oligarquias regionais. A distribuição de cestas básicas justifica-se em episódios de secas prolongadas, que ameacem provocar crises de fome. Mas o Fome Zero projeta distribuir cupons alimentares e cestas básicas em regime permanente, para famílias que não dispõem de determinado patamar de renda monetária. Definido assim, o Fome Zero é um presente para os controladores da rede de distribuição: governadores, prefeitos e políticos locais, que poderão dispor, todos os meses, de um passaporte físico para o sequestro dos corações e das mentes da população pobre. Os cupons e cestas certamente ajudarão os mais pobres, que poderão escolher entre consumir ou vender os alimentos. Mas não irão acabar com o que não existe -a fome- e pouca influência podem exercer sobre o que existe -a subalimentação ou má alimentação, que decorrem da carência de renda. O combate à subalimentação e à má alimentação exigem mudanças sociais estruturais, ligadas à educação, ao emprego e à estrutura fundiária. O programa Renda Mínima, proposto pelo senador Suplicy (PT-SP), poderia contribuir, temporariamente, para amenizar essas tragédias. Ele tem a grande vantagem da impessoalidade, pois a complementação da renda não envolve cupons, caminhões, cestas básicas, centros de distribuição física, autoridades e políticos locais. Lula escolheu o Fome Zero. O "companheiro Sarney", comovido, agradece. Demétrio Magnoli, 43, doutor em geografia humana pela USP, é editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional". Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Emílio Odebrecht: Nossa causa é o Brasil Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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