São Paulo, domingo, 29 de novembro de 1998

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Privatização e capitalismo para poucos



É preciso dar uma virada no enfoque político da privatização. A próxima etapa exige povo no processo
PAULO RABELLO DE CASTRO

A pergunta mais repetida nos últimos dias nos meios econômicos é se o episódio do grampo no BNDES prejudicará o ritmo do programa de privatizações. A primeira impressão é que o programa teria sido empurrado do centro do ringue, no qual antes tinha amplo domínio sobre a opinião crítica e contrária à venda de estatais, direto para as cordas, sob a ameaça de ir à lona.
Não é a primeira vez que isso acontece. No período presidencial de Itamar Franco, houve sensível desaceleração do processo após o avanço inicial, desde o primeiro leilão -o da Usiminas, em 1991. O novo ápice de vendas ocorreu neste ano.
O governo de Fernando Henrique Cardoso, em seu segundo mandato, não tem nenhuma motivação financeira para desacelerar o programa. Muito pelo contrário: é com esses recursos adicionais que a equipe econômica está contando para fechar as contas públicas de 1999 e 2000. Por que, então, a curiosa indagação sobre se o grampo afeta a privatização?
Uma boa parte da resposta pode estar no interessante resultado da pesquisa de opinião pública sobre "preferências populares nas reformas" que o Instituto Atlântico encomendou ao Datafolha. Nela, a parte referente à privatização de estatais elucida a posição do público da Grande São Paulo, uma caixa de ressonância do país.
Para um razoável número de entrevistados, o programa de privatização, na versão atual, já poderia ter beijado a lona do ringue: 39% são contra ele, enquanto 43% acham que a privatização de estatais não trouxe nenhum benefício para o país.
Há, no entanto, os que são a favor -aliás, ainda a maioria simples. Das pessoas ouvidas, 47% se manifestam como favoráveis, embora, quando questionadas sobre a intensidade dos benefícios trazidos, 34% achem que foi "muita" e 13% considerem que foi apenas "pouca".
A informação mais reveladora, contudo, vem a seguir: aparentemente, o grande público quer deixar de ser torcida para entrar no ringue. Dos entrevistados, nada menos que 78% (um acréscimo de seis pontos sobre pesquisa anterior) acham que os trabalhadores deveriam ter "prioridade e meios de financiamento" na compra de estatais. Essa percentagem sobe para 87% e 88%, respectivamente, quando os entrevistados estão nos subgrupos de renda mais elevada (de 20 mínimos para cima) e de assalariados com carteira.
Será que o Brasil quer virar capitalista? Há muito tempo. Mas a pesquisa revela uma crítica latente ao capitalismo de poucos, por oposição ao capitalismo de muitos. O Brasil de ontem sempre foi para o lado do capitalismo de cartório, de cartas marcadas, de casa-grande e senzala. Um mau capitalismo. De fato, um arremedo capitalista, mercantilista, patrimonialista e escravocrata.
Fortes resquícios dessa pecha histórica permanecem, mesmo na virada para o milênio da libertação individual, por meio do conhecimento, da comunicação e do acesso ao capital, via fundos de pensão. Mas o ronco das ruas no Brasil já podia ser ouvido mesmo antes do episódio do grampo.
Para o lutador não ir às cordas e, destas, à lona, é preciso dar uma virada no enfoque político das privatizações. A próxima etapa exige povo no processo -capitalização popular, privatização realmente democrática.
Justiça seja feita: não se pode afirmar que o BNDES, como gestor federal do programa, tenha alguma vez falhado por não organizar impecavelmente o lado da oferta de empresas. Em sete anos de programa, não se sabe de nenhum pecado, mesmo venial.
O problema é que não se organizou o lado da demanda: o acesso aos leilões ficou à mercê de "modelagens" terceirizadas, frequentemente comandadas por estrangeiros, com baixo ou nenhum estímulo para responder ao desafio de incluir o grande público como comprador potencial e até prioritário.
Faça o próprio leitor a sua pesquisa: pergunte à sua volta quem é ou foi, alguma vez, participante de um leilão de estatal, salvo na condição de empregado da própria empresa. Pode procurar com a vela acesa; vai encontrar muito pouca gente. O próprio BNDES responde: menos de 3% do valor total até agora leiloado foi para o chamado "grande público".
Mas, se os brasileiros fossem britânicos, franceses, argentinos, chilenos, mexicanos, ou mesmo se fossem bolivianos, russos, peruanos, a resposta seria bem diferente. Em todos esses países, a legitimação política da privatização resultou de o público ter sido colocado no centro das prioridades para a compra de estatais.
Aqui, tem prevalecido o padrão histórico de exclusão social. Está mais do que na hora da virada para uma privatização popular, com base nos fundos sociais dos trabalhadores brasileiros.


Paulo Rabello de Castro, 49, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico (RJ) e membro da Academia Internacional de Direito e Economia.





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