São Paulo, Quarta-feira, 29 de Dezembro de 1999


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Uma educadora comprometida


A experiência do ensino vocacional caracterizou-se pela originalidade e pelo pioneirismo


ELCIE SALZANO MASINI

"A historicidade do homem, a herança cultural, a consciência histórica fazem dele um ser comprometido. Comprometido com seus contemporâneos, com seus antepassados e com as próximas gerações pelo simples fato de ser homem hoje. Não é uma escolha comprometer-se ou não, o homem já é comprometido pelo simples fato de ser." "A educação vem como um processo pelo qual "todas as potencialidades são atualizadas numa linha de conscientização de si e da realidade". Ela vai proporcionar ao homem uma visão de suas próprias exigências, do momento histórico em que vive, e comprometê-lo a ponto de responsabilizá-lo por todo o processo, levando-o consequentemente a agir."
Essa foi a diretriz da professora Maria Nilde Mascellani em sua obra como educadora. Seus atos, em diferentes momentos de sua trajetória, nas várias posições que ocupou, revelaram convergência de seu pensar e agir. Desde o início de sua carreira (como professora de escola normal e posteriormente como responsável pela criação e coordenação do Serviço do Ensino Estadual Vocacional, de 1962 a 1969, e como secretária da Educação da Prefeitura de Rio Claro, de 1989 a 1990), sua preocupação foi descobrir os caminhos que levassem a conhecer o aluno e suas possibilidades e oferecer-lhe recursos para que pudesse contribuir para a melhoria de uma comunidade à qual tivesse o sentimento de pertencer.
Sua obra baseou-se na crença de que a educação precisa partir de necessidades sentidas e vividas pelo educando no contexto social onde está inserido e de que somente no esforço de realizar algo concreto é que a pessoa pode abrir-se para perceber com mais clareza os ambientes físico e social que a cercam, para assim encontrar sua maneira apropriada de atuar. Com essa convicção empenhou-se sempre em ampliar a formação de professores e outros profissionais da educação, não só nos colégios vocacionais como nas suas diversas atividades educacionais em São Paulo e outros Estados.
A experiência do ensino vocacional caracterizou-se pela originalidade e pelo pioneirismo, ultrapassando a tradicional separação trabalho/educação. Assim, garantiu a porcentagem de vagas a alunos provenientes de diferentes classes socioeconômicas; propiciou condições de integração teoria/prática no currículo do curso ginasial; criou o 2º ciclo profissionalizante, no qual os alunos optavam por uma área de atuação profissional, com a exigência de trabalhar por meio período nessa mesma área; introduziu no curso ginasial noturno, como elemento do currículo, a reflexão dos alunos sobre o trabalho que realizavam durante o dia, desse modo proporcionando a esses alunos ampliação de seus conhecimentos e horizontes sobre o mundo; sistematizou contínua capacitação de professores e técnicos do Serviço de Ensino Vocacional.
O grande mérito dos ginásios vocacionais do Estado foi terem propiciado a todos, professores, pais e alunos, possibilidades de reflexão crítica da prática educativa, que tinha por objeto a prática social.
Nas décadas de 70 e 80, Maria Nilde dedicou-se a projetos de educação popular no Estado de São Paulo e outros Estados, desenvolvendo esforços no sentido da intervenção social, em trabalhos de grupo.
Em 1995, preocupada com a crescente onda de desemprego que vinha atingindo a classe trabalhadora brasileira, propôs-se a estudar a realidade econômica e política e suas implicações quanto às exigências educacionais. Para a educadora evidenciou-se a necessidade de criar um programa de capacitação profissional para trabalhadores desempregados. Como docente da PUC (Pontifícia Universidade Católica), iniciou a orientação curricular e pedagógica do programa Integrar (CNM -Confederação Nacional dos Metalúrgicos- da CUT -Central Única dos Trabalhadores), que hoje funciona em 24 núcleos da capital e no interior de São Paulo e em outros Estados do Brasil.
Segundo afirmava, "tratava-se de uma questão social que exigia resposta rápida. (...) Esse trabalho, pela sua dimensão social e pela especificidade da população abrangida, mostrou-se muito semelhante ao que eu mesma orientei na década de 60".
Maria Nilde Mascellani tomou assim como objeto de estudo em sua tese de doutorado a pedagogia do programa Integrar, inspirada na pedagogia social dos extintos ginásios vocacionais noturnos. A tese, "Uma pedagogia para o trabalhador: o ensino vocacional como base para uma proposta pedagógica de capacitação profissional de trabalhadores desempregados", defendida pouco antes de sua morte (em 19/12, aos 68 anos), recebeu da banca examinadora o seguinte parecer: "Aprovada com distinção e louvor por um trabalho que representa a síntese de uma trajetória como educadora, cuja relevância a universidade reconhece".
Maria Nilde Mascellani, em seus atos como educadora e na sua obra, ilustrou que os indivíduos se desenvolvem e se transformam desde que haja condições educacionais propícias. Permanece com aqueles que conheceram sua obra e que com ela viveram a esperança de que um dia a política da educação brasileira reveja o precipício que separa o mundo das intenções educacionais da realidade do que ocorre no ensino público.


Elcie F. Salzano Masini, 53, é professora livre-docente da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo) e professora e pesquisadora da universidade Mackenzie.



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