São Paulo, sábado, 30 de setembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O sistema político brasileiro funciona bem?

SIM

Correlação espúria

FABIANO SANTOS

OS ESTATÍSTICOS utilizam uma ótima expressão para caracterizar um equívoco muito freqüente entre analistas que interpretam como relações de causalidade meras associações temporais entre dois fenômenos: correlação espúria.
Trata-se de lição básica em cursos de metodologia -o fato de dois fenômenos ocorrerem ao mesmo tempo não permite a inferência de que um seja causado pelo outro ou seja a causa dele. Pois bem, o atual debate em torno da reforma política é marcado por uma imensa correlação espúria.
O fato de termos vivido crises políticas oriundas da descoberta de práticas ilícitas de membros do governo, no passado e no presente, comportamento também observado no Legislativo, tem levado à conclusão de que há uma relação de causalidade entre o sistema político em seu atual formato e a proliferação da corrupção.
Por conseguinte, bastaria alterar as regras, em particular as que regem a competição eleitoral para a Câmara dos Deputados, e o sistema passaria a produzir representantes éticos e de alto padrão moral. A fragilidade do argumento é gritante.
O problema da corrupção e a proliferação de escândalos é fenômeno comum a todos os sistemas políticos nos quais os seguintes ingredientes se encontram associados: capitalismo, setor público ativo na economia, democracia com sufrágio universal, além de partidos em busca de financiamento para campanha. Ou seja, a corrupção é um problema em todos os lugares em que capitalismo convive com democracia, independentemente do sistema político adotado. Os países que conseguiram diminuir as taxas de corrupção foram aqueles que aperfeiçoaram as instituições de controle, como ouvidoria, Ministério Público e Tribunais de Contas. Não creio que estejamos indo mal nesse aspecto.
O mérito das principais propostas de reforma política atualmente em voga pode ser avaliado, todavia, quanto a sua capacidade de qualificar o sistema político brasileiro com relação a outros quesitos. Por exemplo, a estabilidade do quadro partidário. Tome, nesse sentido, a proposta de implantação do voto distrital (sic)-misto, o modelo alemão. Não vale a pena discutir, neste pequeno espaço, as enormes dificuldades advindas da tentativa de adotar tal sistema no Brasil. Talvez venha mais ao ponto lembrar que alguns países adotaram o famoso modelo na esperança de conferir mais estabilidade e consistência, "accountability" ou o que seja ao sistema de partidos, e longe estiveram de alcançar os objetivos colimados.
Basta lembrar os casos da Venezuela, Bolívia, México e Itália, países que adotaram o distrital (sic)-misto e enfrentam quadros partidários fragmentados, pulverizados e polarizados, para constatar que a mercadoria vendida não foi entregue. Se a linha da correlação espúria é livre, arrisco a argumentar, contra o sistema, que o modelo alemão não funciona em países de língua latina.
O sistema brasileiro funciona bem, obrigado. Temos um sistema partidário estabilizado, com taxas de volatilidade cadentes, girando em torno de quatro a cinco partidos em equilíbrio de condições, e que expressa a pluralidade social radicada na sociedade. Temos uma disputa presidencial mais estabilizada ainda, baseada em torno de dois blocos, um de centro-esquerda e outro de centro-direita, que se revezam e continuarão a se revezar no poder, caso os arroubos lacerdistas dêem lugar ao bom senso e à disputa em torno de uma agenda para o país.
Mudanças são bem-vindas, desde que preservando o caráter radicalmente democrático de nossa arquitetura institucional, calcadas no presidencialismo, grande símbolo da incorporação política em um país desigual, no voto proporcional, garantia dos direitos de minoria em uma sociedade complexa e plural, e na lista aberta, quem sabe flexível, espaço vital de preservação da "accountability" nas eleições para o Legislativo.


FABIANO GUILHERME MENDES DOS SANTOS, 42, doutor em ciência política, é professor titular e pesquisador da Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro). É autor, entre outras obras, de "O Poder Legislativo no Presidencialismo de Coalizão" (UFMG/Iuperj).

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