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São Paulo, quinta-feira, 30 de outubro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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Os "democratas"

RUDÁ RICCI


Toda agenda dos movimentos sociais brasileiros sofre um amplo debate social. Não se impõe pelos escaninhos do Estado

O ARTIGO de Fabio Giambiagi publicado nesta seção há pouco mais de um mês ("Os autoritários", "Tendências/Debates", 21/ 9) pode ser lido em duas partes. Na primeira, defende a já tradicional agenda de reformas construídas por alguns intelectuais brasileiros nos anos 1990. A segunda parte é um libelo contra o que denomina movimentos sociais. O título do artigo denuncia qual parte do texto o autor considera mais importante.
Seu artigo retoma certa tradição de rejeição à diferença que, inclusive, deu origem ao conceito de movimento social. Em 1840, Lorenz Von Stein defendeu a necessidade de uma ciência da sociedade que se dedicasse ao estudo dos movimentos sociais, em especial, ao estudo do movimento operário francês e do socialismo.
O tema surge no bojo de um processo de estranhamento das instituições públicas e de alguns segmentos urbanos diante do acelerado processo de industrialização da Europa.
Em 1845, Janin, em "Un Hiver a Paris", oferece a medida do pavor que se instala nos segmentos sociais tradicionais das grandes metrópoles européias: "A Paris da noite é assustadora; é o momento em que a nação noturna se põe em marcha. (...) O terror é grande, terrível, imenso. Essa é a população fervilhante e furtiva que Paris deixa viver nos becos pavorosos. É uma verruga virulenta sobre a face dessa grande cidade". O conceito nasceu sob a égide do estranhamento, retomado por Giambiagi.
É fato que os movimentos sociais brasileiros adotaram, nos anos 1980, uma visão antiinstitucional, negando todas as instâncias políticas clássicas por desconfiança.
Mas, passados dez anos, essa visão foi se alterando. Vários movimentos sociais negociaram novos dispositivos na Constituição Federal de 1988 e, em seguida, espalharam pelo país novos mecanismos de gestão, com ampla participação social.
Hoje, são 30 mil conselhos de gestão pública espalhados pelo país, envolvendo áreas diversas como educação, direitos de crianças e adolescentes, assistência social, gestão de recursos hídricos, gestão ambiental, desenvolvimento rural e tantos outros.
Giambiagi parece desconhecer essa contribuição, talvez a mais profunda ocorrida na arquitetura do Estado nacional em anos recentes. Também parece desconhecer que as principais elaborações de aperfeiçoamento democrático nascem, hoje, em fóruns e redes que articulam diversas entidades e movimentos sociais.
Esse é o caso da reforma política.
Também é o caso da Lei de Responsabilidade Fiscal e Social, que tramita na Câmara e que foi apresentada pelo Fórum Brasil de Orçamento.
São inúmeros os casos que parecem falar de um mundo absolutamente distinto daquele sugerido pelo artigo publicado nesta seção. Justamente porque o artigo em questão não pretende dialogar, mas acusar.
Seria o caso de questionarmos, apenas para traçar um paralelo, quais métodos democráticos aquela agenda de reformas adotou para sofrer a avaliação popular. Em que local os cidadãos puderam analisar? Quem elaborou tal agenda? Porque toda agenda dos movimentos sociais brasileiros (que não adotam a ambição de denominarem de agenda do Brasil) sofre, por princípio, um amplo debate social e não se impõe pelos escaninhos do Estado.
Contudo, Giambiagi parece tocar num elemento dos mais importantes: a cultura política brasileira não é absolutamente democrática. É aqui que, sorrateiramente, a prática dos movimentos sociais converge para aquela dos que defendem a tal agenda de reformas. Tanto uns quanto outros são ambivalentes, meio autoritários, meio democráticos, meio particularistas, meio públicos.
Pesquisas recentes, incluindo a coordenada para o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) por Guillermo O'Donnell, indicam essa ambigüidade tupiniquim.
A pesquisa revela que 42% dos brasileiros não sabem se são favoráveis à democracia ou ao autoritarismo.
Outra pesquisa, organizada pelo Ibope, revelou recentemente que quase metade dos segmentos sociais mais instruídos do nosso país é favorável ao uso de tortura nas cadeias (ao contrário dos segmentos menos instruídos, que não ultrapassam 19% com a mesma opinião).
Enfim, o título do artigo de Giambiagi inclui um espectro social muito maior do que o autor imaginaria ou desejaria. Um pouco de humildade e reconhecimento do diferente poderia ser o início para superarmos esse impasse.


RUDÁ RICCI, 45, sociólogo, doutor em ciências sociais, é membro do Fórum Brasil de Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. É co-autor de "A Participação em São Paulo".


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