São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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O DIREITO DE VOTAR

Enquanto os brasileiros vão às urnas legalmente obrigados a votar, em dois dias os norte-americanos estarão escolhendo seu próximo presidente, com a diferença de que nos Estados Unidos o comparecimento é uma decisão que cabe a cada um dos eleitores.
Não há dúvida de que o sistema eleitoral dos EUA não é, em seu todo, um exemplo a seguir. Ao contrário, representa um anacronismo político, que, se fazia sentido no final do século 18, quando foi concebido, perdeu em parte a razão de ser.
O sistema brasileiro para eleições majoritárias, baseado no princípio do "um homem, um voto", é mais democrático e racional, mas isso não significa que não possa ser aprimorado. E um dos aspectos diz respeito precisamente ao voto obrigatório.
Em termos globais, são poucas as democracias que estabelecem em lei a necessidade de votar. No Primeiro Mundo, elas se restringem a Austrália, Bélgica e Luxemburgo, além de alguns Cantões suíços. Na América Latina, Brasil, Uruguai, Argentina, Costa Rica, Equador, México e Venezuela adotam o voto obrigatório.
A principal justificativa é a necessidade de conferir mais representatividade aos eleitos. É um raciocínio defensável especialmente em países cuja democracia ainda não atingiu a plena maturidade, como é o caso do Brasil. Em termos conceituais, contudo, não há dúvida de que é preferível deixar a cada cidadão a prerrogativa de optar pelo comparecimento. Se o voto é um direito -e não há dúvida de que o é-, é preciso que exista a liberdade de não votar.
A ambigüidade de direitos que são também deveres encontra seu limite na noção de liberdade. O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) estabelece a distinção fundamental. Há dois modos de cumprir um "dever". Quando o motorista respeita o limite de velocidade por medo de receber uma multa, ele age "de acordo com o dever". Mas o condutor pode também acatar a norma por acreditar que ela está de acordo com a racionalidade humana, pois proporciona segurança, por exemplo. Nesse caso, ele age "pelo sentido do dever".
Esse motorista consciencioso é, para Kant, mais livre do que aquele que só teme a multa. Paradoxalmente, a obrigatoriedade do voto, que visa a reforçar a democracia, a torna, no plano dos conceitos, menos livre e, assim, menos democrática.
Pode-se sustentar que o voto deve permanecer obrigatório no Brasil até que as instituições e a consciência cívica estejam mais bem sedimentadas, mas não se deve perder de vista a meta do voto facultativo. Ele é a contrapartida lógica do exercício da liberdade.


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