São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Herzog e a cruz

RIO DE JANEIRO - Volto ao assunto das fotos que seriam de Vladimir Herzog na prisão. Perguntaram-me se eu ficara chocado com mais aquela prova das torturas praticadas pelo regime militar. Em se tratando de Herzog, disse que não. Chocou-me, sim, a foto do jornalista assassinado, na montagem criminosa de um suicídio que não houve e no qual ninguém acreditou.
A viúva de Herzog, naturalmente traumatizada pelas fotos agora reveladas, reconheceu uma delas como a do marido, chegando a exibir o relógio que aparece no pulso do torturado e que ela guardou como lembrança. No final da semana passada, admitiu que se enganara, o que também é natural.
As fotos que foram consideradas (erradamente) como instantâneos dos últimos momentos de Herzog, tiveram o mérito de revelar, mais uma vez, a truculência usada pelo regime contra aqueles que não aceitavam a opressão. Bom mesmo que tenha sido de outro prisioneiro, e não de Vladimir. Dele temos a foto definitiva. O cadáver que manchará para sempre aquele período de nossa história.
Guardadas as proporções, e salientando apenas a força das imagens, o que ficou da vida de Cristo foi o corpo pregado na cruz, na solução final de um drama que teve, tal como o de Herzog, dolorosas etapas preliminares. Como símbolo para sua fé, a cristandade não escolheu o Cristo açoitado nem coberto de espinhos, o Cristo caído diversas vezes a caminho do Calvário. O símbolo final e assombroso de seu sacrifício foi o seu próprio corpo pregado na cruz. E, por extensão, a própria cruz, nua, bastante, que até hoje assinala o túmulo dos que acreditam nele, a mesma cruz que é traçada na testa dos cristãos que nascem e dos que morrem.
O corpo de Vladimir Herzog pendurado no porão do Doi-CODI não precisa de antes nem de depois. Ele se basta. Como símbolo de uma era, dispensa explicação. Fala tudo o que devemos ouvir.


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